Eli Vagner F. Rodrigues
O título Estrelas além do Tempo não parece ser uma boa expressão para verter em português o original, Hidden Figures (figuras ocultas). Mesmo considerando que os títulos não devem ser, necessariamente, traduções e sim adaptações ou versões para um mercado específico, o título em português parece não dizer muita coisa sobre o filme. A obra, no entanto, diz bastante sobre temas que já conhecemos bem, segregação racial e preconceito de gênero. Por mais que estes temas sejam de grande importância e figurem como motivos culturais contemporâneos por excelência, não são suficientes, nesse caso, para levar o filme ao status de grande obra cinematográfica.
A condução soa, a todo tempo, marcada por um modelo bastante conhecido e repetido, mesclando cenas pensadas para provocar indignação com momentos de descontração, sob apelos musicais e cômicos. Por esse motivo o filme já foi rotulado como um “feel-good movie that hurts” – vale destacar que este aspecto deve muito a boa trilha sonora de Hans Zimmer, Pharrell Williams e Benjamin Wallfisch.
A história é baseada na experiência de Katherine Johnson (Taraji P. Henson), uma matemática afro-americana que participou do grupo de engenheiros e matemáticos responsáveis pelo lançamento dos foguetes que colocariam o primeiro americano na órbita terrestre. Ao lado das colegas Dorothy Vaughn e Mary Jackson, Johnson teria sido peça fundamental neste que foi o primeiro contra-golpe americano na corrida espacial (os russos já tinham colocado Yuri Gagarin na órbita terrestre meses antes). A NASA contava então com equipes compostas por “computadores humanos”, pessoas responsáveis pelos inúmeros cálculos que envolvem atividades relacionadas à astronomia e astronáutica.
Vale esclarecer que o grupo de “computadores humanos” retratado no filme existiu porque agência espacial americana ainda seguia normas que distinguiam os funcionários negros dos brancos, separando os banheiros e refeitórios, e não porque a agência tivesse criado um grupo de trabalhadoras negras para calcular lançamentos. Um dos problemas enfrentados pelas profissionais do cálculo era a falta de banheiros para negros em pontos da planta da agência espacial nos quais não se esperava que negros viessem a trabalhar.
Em uma cena que acaba se tornando recorrente no filme, explorada tanto pelo aspecto de gritante injustiça quanto pelo teor cômico, Katherine tem que se deslocar aproximadamente 800 metros de sua mesa de cálculos para usar o banheiro. A cafeteira da sala de trabalho da equipe responsável pela missão que levaria John Glen (primeiro astronauta americano a entrar em órbita terrestre) era vedada ao uso de negros (“colored people”). Estas condições de trabalho, somada a inúmeras medidas segregacionistas, dão o tom de um absurdo de divisão racial e social em que viviam os Estados Unidos ainda no início da década de 60.
Este absurdo se acentua, sobretudo, por se tratar de uma história que se passa em um ambiente supostamente ilustrado, pois ligado à ciência e ao conhecimento. O grande público, que provavelmente não conhece ambientes científicos, pode estranhar o fato de que homens de ciência possam se comportar de maneira retrógrada e preconceituosa. O filme chega até a desenvolver esse aspecto, o fato de que os ambientes científicos não estão imunes a tendências sociais e políticas as mais diversas. Em vários momentos, a direção insiste em deixar claro que fazer parte de uma comunidade científica não constitui nenhum atestado de moralidade.
A obra de Theodore Melfi traz, além das mensagens ativistas, (direitos civis, feminismo), causas mais do que legítimas, uma verdade ainda mais pungente, e não tanto agradável para a maioria de nós. A saber, a de que existe, e sempre existiu, uma “aristocracia matemática” no mundo em que vivemos e o fato de que, como toda a aristocracia, ela é vedada à maioria. Nesse sentido, a maior segregação é a efetivada pela própria natureza. Não há luta política que mude este estado de coisas. A aristocracia matemática se revela a todos desde os primeiros anos escolares. Sabemos que uma pessoa é mais inteligente que a média se ela tem melhores resultados em matemática, e essa distinção independe de classe, gênero, cor, credo ou sexualidade: a matemática impõe um respeito autêntico. Em silêncio invejoso, observamos o colega voltando para sua carteira com sua nota 10 na prova de matemática.
Este tema toma corpo se considerarmos que vivemos em um mundo em que passar-se por inteligente, relevante, importante, ficou cada vez mais fácil e no qual o conceito de mérito passou por inúmeras revisões efetuadas por pedagogias igualitárias. Ser mais inteligente do que os outros se tornou uma questão sem sentido, desvalorizada, proibida pela patrulha do nivelamento do homem. A pedagogia chegou até a inventar novas modalidades de inteligência para nos consolar, inteligência emocional, inteligência social, etc.
Efetivamente, no entanto, isso traz alguns problemas para o mundo da cultura. Se todos tem voz e o relativismo confere importância a todos os discursos, a banalidade toma corpo na cultura, pois assim como só uma minoria é capaz de compreender problemas complexos, a maioria é plenamente capaz de produzir bobagem. Sendo assim, imperam os juízos que tendem a reconhecer as coisas mais fáceis como mais importantes. Apenas em alguns ambientes de conhecimento ainda continuam valendo e fazendo sentido os velhos juízos comparativos de inteligência entre os indivíduos. A matemática é um desses ambientes, e é singular a maneira como é privilegiada: está presente em todos os outros mundos, da economia ao vestibular.
Com a matemática não existe enrolação discursiva, retórica de qualquer tipo, dribles culturais ou imposturas intelectuais, aspectos facilmente encontrados nas ciências humanas e nas ciências sociais aplicadas como provou, ou provocou, Alan Sokal em Intellectual Impostures. Londres: Profile Books, 2011. (Sokal publicou um artigo nonsense em uma revista científica – Social Text, publicada pela Duke University Press, de estudos culturais, com linha editorial marcadamente pós-moderna, afirmando que a gravidade era uma construção social e linguística. Depois desmascarou a revista demonstrando que o artigo – Transgressing the Boundaries: Towards a Transformative Hermeneutics of Quantum Gravity – era uma fraude). Segundo Sokal, o artigo era:
…um pastiche de jargões pós-modernos, referências aduladoras, citações pomposas e completo nonsense“, tendo sido “estruturado em torno das citações mais tolas que eu pude encontrar sobre Matemática e Física” feitas por acadêmicos pós-modernos.
No mundo da matemática não há polissemia, moda cultural ou grupos de influência. No aspecto da competência a matemática é a prova dos nove: ela separa os mais aptos, os melhores e os mais inteligentes dos menos aptos, dos piores e dos menos inteligentes, e isso nem sempre causa bem-estar nas instâncias de poder que regulam as instituições. Neste universo, os egos não podem nos passar as moedas falsas que o aparelhamento tecnológico e cultural proporcionou aos menos dotados. A capacidade de compreender um problema matemático complexo não passa por uma questão de classe, por um olhar inteligente, por um perfil ou um comentário supostamente inteligente no Facebook ou ainda por um discurso vitimista.
E é neste ponto que esta digressão sobre a matemática se relaciona com a obra: em nenhum instante o filme transparece algum apelo vitimista. As inúmeras dificuldades e injustiças enfrentadas pelas personagens são contrapostas com conhecimento e uma atitude de tenacidade. É neste momento que o talento matemático de Katherine Johnson a transforma em protagonista, tanto do filme como da missão espacial.
Theodore Melfi, talvez sem consciência plena desse aspecto, acaba sugerindo que algumas pessoas nascem mais inteligentes que outras e que, recebendo boa formação, alcançarão a compreensão de problemas exclusivos de uma aristocracia do conhecimento. Esta aristocracia possui uma hierarquia, no topo desta pirâmide do saber paira a matemática como o universo das possibilidades mais abstratas. Nada a ver com este nosso confuso cotidiano de palavras, interpretações e pontos de vista. Na matemática não há pós-verdade.
Neste universo de eficiência real, de talento autêntico, diferente da noção de talento advinda de reality-shows, da bajulação dos amigos e de nossa política, Katherine Johnson provou que a natureza e uma formação científica sólida não se curvam a preconceitos construídos culturalmente. O filme está muito aquém de seu talento matemático.