Eduardo Rota Hilário
Escrever sobre Dalva de Oliveira é sempre um desafio. Seja pela dificuldade de encontrar, na internet, documentos e dados referentes à Rainha da Voz que de fato enriqueçam um texto, seja pelo medo de ser insuficientemente qualificado para esmiuçar os trabalhos de uma das maiores cantoras que o Brasil já teve, quando o assunto é este, as palavras costumam fugir de modo impiedoso – e até mesmo covarde. Mas a necessidade de memória grita mais alto, e embarcamos agora num desafio que pode ou não dar certo. Independentemente do resultado, entra em cena o reavivamento das lembranças, prelúdio básico para qualquer imortalidade.
Sucesso inegável em um passado não tão remoto, é de uma ironia torturante ver essa barreira informacional crescer cada vez mais ao redor de Dalva. Mais cruel ainda é saber que Dalva de Oliveira, álbum homônimo de 1961, também conhecido como Jubileu de Prata, esteve na lista de Melhores Long-Playings de 1961 – Nacionais, do jornal O Globo, mas não recebeu, em 2021, sequer um texto comemorativo por seu sexagésimo aniversário. Longe de querer assumir pioneirismos ou exclusividades, mas esta é, provavelmente, uma das únicas análises críticas sobre o álbum em questão disponíveis nos inúmeros sites brasileiros.
Expostas as injustiças relacionadas ao disco lançado pela saudosa gravadora Odeon, nada mais apropriado do que adentrar o território analítico a partir deste parágrafo. E o melhor jeito de iniciar uma caminhada por esse arriscado labirinto talvez seja dizer o que motivou a existência da obra em destaque. Logo na contracapa do LP, em um belíssimo texto-síntese, líamos, dentre outras coisas, que “Este longa-duração é todo festa comemorativa ao jubileu de Dalva de Oliveira, ao jubileu da canção-Dalva de Oliveira”. Naquele momento, a Rainha do Rádio de 1951, além de ter uma carreira consolidada, era também sinônimo de lenda viva.
“Dalva de Oliveira é a própria canção do Brasil. É a canção autêntica. Genuína. Sem rebuscados. A canção que, realmente, transmite alguma coisa. Que fala à sensibilidade”, dizia ainda um trecho do primeiro parágrafo. É por isso que, reunindo principalmente regravações de verdadeiros sucessos de sua trajetória artística multifacetada, Dalva conquistava palavras tão pertinentes, em digna celebração à sua responsabilidade cultural. Em 12 faixas, espécie de padrão numérico para grande parte de sua discografia, Vicentina de Paula Oliveira – nome “original” da nossa estrela – atingia, ali, patamares que não poderiam ser esquecidos.
Dentro dessa lógica, não surpreende que a abertura do álbum fique a cargo de Ave Maria No Morro. Nada seria mais preciso e exato do que a célebre composição de Herivelto Martins – ex-marido e ex-parceiro musical de Dalva no Trio de Ouro – para o início de uma obra tão importante. Apesar de todos os conflitos entre os dois, nossa extraordinária cantora nunca deixou de lado as criações imortais de um compositor tão talentoso. E se a habilidade vocal da inigualável intérprete pode ser, às vezes, colocada em xeque nesta versão da música, tendo em vista outras gravações da mesma voz, isso ocorreria de modo saudosista, ignorando as sutilezas do lançamento de 1961.
Em continuidade, Segredo, do mesmo Herivelto com Marino Pinto, mantém sua relevância não só aqui, mas também em futuras releituras. Em 1971, por exemplo, Dalva de Oliveira chegou a apresentar um trecho dessa faixa na histórica TV Tupi. Mas é Estrela Do Mar, a música seguinte, que, com certeza merece algumas considerações a mais. Isso porque ela repercute até hoje, e das maneiras mais distintas possíveis. Cantada por Maria Bethânia em Brasileirinho, ou rememorada pela apresentadora Xuxa em pleno 2021, por ter marcado belas histórias de seu passado, a estrela de Marino Pinto e Paulo Soledade torna-se incomparável na versão da Rainha da Voz – apesar do que indicam os cruéis números no Spotify.
Mais à frente, os laços rompidos de Tudo Acabado (J. Piedade/Oswaldo de Oliveira Martins) assumem um dos pontos mais dramáticos do LP. “Nosso apartamento agora/Vive à meia-luz/Nosso apartamento agora/Já não me seduz”, narram os versos ainda bem repercutidos hoje em dia. Mas nada se compara à beleza de Que Será, composição de Marino Pinto e Mário Rossi escolhida como quinta faixa do projeto. Esse é, sem dúvidas, um dos mais belos registros de toda a carreira da Estrela Dalva, construindo fotograficamente uma história de arrependimento e outras minúcias sensíveis de um amor totalmente idealizado, que se entrega por inteiro.
Não Faças Caso Coração (Custódio Mesquita/Evaldo Ruy), por sua vez, faz curiosa menção a Romeu e Julieta, logo contraposta a uma modernidade ainda mais acentuada nos dias de hoje. E se, no disco de vinil, esse seria o término do Lado A, comecemos agora o Lado B em grande estilo. Afinal, os Olhos Verdes de Vicente Paiva são um sucesso reconhecido até mesmo por outras lendas musicais, como é o caso de Gal Costa, que gravou a mesma canção no disco Água Viva, de 1978. É certo que, por utilizar o termo “mulata”, essa música pode – e deve – ser questionada atualmente, mas não é possível ignorar que alguns termos são historicamente perpetuados em nossa língua. Modificar a realidade, portanto, leva tempo.
Depois desses breves comentários, é preciso evidenciar que aqui terminam as faixas mais fáceis de se analisar. A partir de agora, a dificuldade aumenta bastante. E é por isso que Saudade (Jayme Redondo) e Mãe Maria (Custódio Mesquita/David Nasser) serão injustamente resumidas a músicas que têm crescido recentemente, e bem aos poucos, no Spotify – plataforma que recebeu o Dalva de Oliveira há pouquíssimo tempo. Em adição, Coqueiro Velho, de Fernandinho e J. Marcílio, constrói algumas belas metáforas que serão mantidas em segredo, a fim de incentivar a escuta de pelo menos um trecho do referido disco por parte de quem lê este texto.
Já no fim do repertório, Sentinela Alerta, de Ary Barroso, se apropria do universo militar desde sua abertura instrumental, transformando uma realidade destrutiva e bélica em cenário de conflitos passionais – ou algo próximo disso. Em seguida, para encerrar de vez o álbum, a brevíssima Tu, do mesmo compositor, reforça um lado muito romântico de Dalva, apresentando uma letra simples, mas bela, que dura menos de dois minutos – o que não a diminui qualitativamente. “Só te quero a ti/Só te sinto a ti/Só palpito por ti/És minha vida, querido”, dizem alguns versos escritos novamente sob uma abordagem voltada para a entrega.
Tendo uma visão panorâmica do faixa a faixa que compõe Dalva de Oliveira, fica mais fácil de entender por que o mesmo jornal O Globo, citado alguns parágrafos acima, ficou tão empolgado no começo daquele ano de 1961, evidenciando isso em sua Parada de LPs – algo próximo das edições do Nota Musical, publicadas por aqui mensalmente. Quando elogiava a rentrée de uma estrela nacional no disco, esse importante veículo de comunicação reconhecia a qualidade musical de uma acurada coleção de sucessos regravados. Ia além, porque não exigia similaridade com versões anteriores. Por fim, ainda legitimava um LP diversificado da primeira à última música.
E quanto à cantora que dá nome ao disco? Basta resgatar algumas palavras de Maria Bethânia: “Dalva, pra mim, foi a melhor coisa de voz que aconteceu no Brasil”. Mas as declarações da Abelha Rainha não param por aí. Em 1977, por exemplo, no álbum Pássaro Da Manhã, Bethânia confessou que “a Dalva tinha a coragem e o jeito de cantar, no palco, o que até então eu só tinha coragem e jeito de cantar dentro da minha casa”. Os elogios não são exclusivos da filha de Dona Canô. Também não surgiu à toa o apelido de Rainha da Voz. Sendo assim, apesar de nem sempre lembrada na atualidade, Dalva de Oliveira pode muito bem ser resgatada pelo jornalismo cultural. E reviver um ícone dessa magnitude, se ainda não é, beira uma das grandes obrigações nacionais.