Iris Italo Marquezini
É possível apontar para diversos episódios de Cowboy Bebop e pensar “caramba, agora a parada ficou séria”. Não é difícil mencionar outras animações que pegaram o público de surpresa e apresentaram uma trama tão ousada e emocionante em um momento inusitado. Em Avatar: A Lenda de Aang, pode-se citar o episódio em que Toph falha em evitar a captura do bisão Appa pelas mãos da vilã Azula. Em Fullmetal Alchemist: Brotherhood, aconteceu com o inesquecível arco de Nina, uma garotinha com um pai especialista em criar quimeras e o final trágico desta relação.
Em Steven Universo, lembra-se do episódio em que Steven encontra uma fita deixada pela mãe já falecida. Irônico, porque esse episódio presta homenagem direta a justamente um capítulo de Cowboy Bebop. Speak Like a Child também envolve assistir uma fita em uma televisão, só que dessa vez a espectadora é Faye Valentine. A mercenária caloteira, viciada em apostas e sem memória alguma do próprio passado sente um soco no estômago quando percebe que existia muito mais sobre ela mesma para se descobrir a partir do momento que assiste a uma mensagem de décadas atrás.
A sensação de encontrar a obra 25 anos depois da estreia em 1998 na TV Tokyo é semelhante à de Faye. O seriado criado por Shinichiro Watanabe (Samurai Champloo e Carole & Tuesday) sustenta o próprio sentimentalismo e originalidade intactos mesmo décadas depois. Quem descobre a série hoje encontra particularidades com as produções dos anos 1990 (sejam elas boas ou ruins), mas também entra em contato com um universo futurista dinâmico e divertido como só uma boa space opera – ou melhor, um space jazz, pode apresentar.
O ano é 2071 e o planeta Terra está inabitável por causa de acidentes com portões espaciais e o lixo gerado por essas ocorrências. A humanidade destina-se a outros planetas por meio de naves e todo mundo está apenas tentando ganhar alguma grana para não passar fome. A ambientação aqui é cirurgicamente organizada para prestar homenagem aos bons faroestes com xerifes barra pesada, moralmente questionáveis e de falas ríspidas. A surpresa é o surgimento de uma inesperada família no meio disso tudo.
Spike Spiegel é o personagem no qual a maior parte da trama é centrada. O mercenário trambiqueiro é dublado na versão brasileira por Guilherme Briggs, que consegue dar um tom hilário ao cowboy característico das atuações já conhecidas do ator. O malandro é um excelente protagonista por trazer lutas cheias de coreografias ao estilo Bruce Lee e respostas sarcásticas a qualquer ameaça que aparece no caminho.
Escondido no meio de toda essa violência há um tom inescapável de melancolia o rodeando. O ponto de virada que demonstra isso é o aclamado capítulo Ballad of Fallen Angels, já no começo do anime. O mistério acerca do passado é um dos pontos mais empolgantes de se acompanhar e o episódio, um genuíno espetáculo de visual e escrita, serve para mostrar todo o potencial dramático da história.
O tema sobre fugir do passado é uma constante em absolutamente todos os episódios do seriado. Até mesmo o engraçadíssimo Toys in the Atric, que presta homenagem aos clássicos Alien e Predador, trata sobre como as consequências de uma ação supostamente esquecida podem ser destrutivas. Claro, isso por meio de uma trama que aborda como restos de comida esquecidos na geladeira se transformam em um ser consciente que persegue a tripulação. Ainda assim, são diferentes abordagens como essas que tornam a experiência de assistir ao anime tão vasta e repleta de novidades a cada novo arco.
A experimentação é um dos pontos mais fortes da série. O caráter episódico da obra permite não só uma liberdade criativa para brincar com o tom, mas também com gêneros e estilos de animação diferentes. Esse fator se explica pela presença de diversos diretores e equipes ao longo dos 26 episódios. Embora seja uma ficção-científica, as influências do western, do noir, do cyberpunk, do blaxploitation e até mesmo do terror são bastante aparentes. O resultado dessa variedade toda gera aventuras com um gênero próprio e com espaço para cada personagem brilhar ao longo delas.
Edward Wong Hau Pepelu Tivrusky IV, ou simplesmente Ed, é o destaque de um dos capítulos mais memoráveis da série. Mushroom Samba aborda o momento em que a criança hacker sem gênero definido oferece (sem saber) cogumelos alucinógenos para os amigos e tudo começa a desandar em uma épica e hilária trama de perseguição. Grande parte das cenas de Ed, acompanhado pelo corgi Ein, são piadas ao estilo Charlie Brown, em que os adultos dificilmente entendem o mundo da lua vivido pela criança. Chega a ser estranho assistir aos primeiros episódios novamente e não ver a presença da hacker animando frequentemente a muitas vezes triste equipe da Bebop.
No entanto, quem participa desde o começo da série com Spike é o ex-policial e agora mercenário estoico Jet Black. Embora muitas das falas do personagem tenham um sexismo bastante incômodo, a função dele na trama é clara: fazer um contraponto a Spike. Diversos episódios focados em Jet, como Ganimedes Elegy, trazem o cowboy optando pela racionalidade em relação às complicações com o próprio passado. O foreshadowing serve para a audiência entender os caminhos que cada um dos tripulantes da nave escolherá traçar, seja ele de autossabotagem ou de autopreservação.
Portanto, por mais que Cowboy Bebop seja repleto de momentos cômicos, há um clima constante de tragédia que ainda está por vir. O fato dos protagonistas se conhecerem em pontos tão distintos das próprias jornadas torna os momentos mais leves uma benção e os mais sensíveis uma forma de partir o coração da audiência. Embora caçoem uns dos outros, há um respeito mútuo entre os tripulantes da Bebop e um pacto em não fazer perguntas até que isso se torne inevitável. Essa dinâmica, apesar de problemática, mostra o quanto essa família está disposta a aceitar uns aos outros sem hesitação.
Faye Valentine parece a maior representação desse espírito found family de Cowboy Bepop. A personagem – que literalmente esqueceu e perdeu todas as pessoas que um dia teve alguma conexão – encontra um lar para voltar nos braços de Spike, Jet e Edward, por mais que nenhum demonstre carinho de fato. No fim da trama, é ela quem desesperadamente tenta unir o que o destino parece já ter decidido separar. A vida de aventuras com a ausência de uns aos outros parece incompleta (fora as dívidas que não param de chegar).
Toda essa ambientação futurista, frenética e melancólica é intrinsecamente ligada com a trilha sonora do anime. A clássica abertura de jazz improvisado Tank!, composta por Yoko Kanno junto com a banda The Seatbelts, já prepara o espectador para uma trama energética cheia de tiroteios, fugas inesperadas e perseguições com naves espaciais. As palavras de um literal manifesto que aparecem escritas na tela são de arrepiar.
Por outro lado, o tema de encerramento, The Real Folk Blues, traz um vislumbre de um lado mais reflexivo, lento e filosófico. A música retorna nos últimos minutos do seriado no episódio homônimo, agora com o significado e peso dos versos entendidos por completo pela audiência. A composição mais emocionante da série talvez seja Call Me Call Me, que aparece no momento que marca uma espécie de adeus para alguns dos personagens. A trilha de Hard Luck Woman mostra um indício do que poderia ser um final feliz para cada um dos tripulantes da Bebop, no que é, sem dúvidas, o ápice emocional da série.
A mistura de gêneros musicais dentro do anime representa o caos que é viver no mundo, talvez uma das melhores definições de um “futuro próximo”. Ouvir um jazz empolgado dar vida às naves belissimamente desenhadas entrando em combate e em seguida um blues melancólico quando a aventura acaba é uma sensação de final de festa. Os jantares divididos em família, às vezes em silêncio e outra vezes acompanhados de breves piadas, trazem uma imersão tão grande ao universo proposto que o espectador também se sente parte da família Bebop, observando-a por vários ângulos.
Se por um lado temos heróis tão sensíveis e tridimensionais, o antagonista principal da trama, Vicious, não oferece tanto carisma. O espadachin representa o passado criminoso de Spike no Sindicato do Dragão Vermelho e tudo que o protagonista poderia ser sem a influência positiva de Jet na própria vida. Ainda assim, o vilão parece caricato, pouco desenvolvido e até mesmo desperdiçado em vários aspectos.
Outra personagem que também peca na profundidade é Julia. Embora a presença curta dela em flashbacks, principalmente, represente um passado idealizado por Spike, a relevância dela na trama peca em não ir além disso. Ademais, fora um momento brilhante de interação espontânea entre Julia e Faye, a audiência fica com pouquíssimas ideias sobre quais os porquês do interesse amoroso ser supostamente tão apaixonante.
Em contrapartida, a condução episódica consegue apresentar personagens bastante cativantes, mesmo que por um curto período de tempo. Vale menção à VT, do episódio Heavy Metal Queen e Rocco, de Waltz for Venus. No arco de dois capítulos Jupiter Jazz, a audiência é apresentada à Gren, um antigo espião complexo, vingativo e cheio de rixas pessoais com Vicious. Antônio, Carlos e Jobim, três amigos idosos bem humorados com nomes em homenagem ao compositor brasileiro, por vezes aparecem em segundo plano como figurantes nas aventuras dos protagonistas.
Pode-se ver, então, a atenção dada por Shinichiro Watanabe em criar personagens secundários atrativos aos olhos do público e com tramas próprias dentro das infinitas galáxias apresentadas. Se por um lado isso gera designs para pessoas, etnicamente falando, dificilmente representadas em animes ou ficções científicas em geral (que por vezes sequer procuram imaginar o futuro de forma diversa), problemas aparecem. Diversos criminosos são frequentemente apresentados como pessoas negras e até mesmo a participação de indígenas na série, como o sábio Laughing Bull, caem em estereótipos típicos de filmes de faroeste.
Inclusive, a participação de personagens LGBTQAIP+ ora acerta, ora erra feio. Enquanto Gren possui com um corpo que desafia convenções de gênero e tenha nuances bastante positivas se tratando de representatividade, a transição forçada na qual ele passa deixa um gosto amargo na boca. Figurantes também dizem estar em relacionamentos homoafetivos com normalidade, mas pessoas trans aparecem muitas vezes apenas como alvo de piadas.
Também é impossível ignorar a quantidade frequente de figuras femininas sexualizadas de propósito. Ao longo dos 26 episódios, nota-se uma presença grande de mulheres nas histórias com estilos bastante diferentes entre si. Nessa perspectiva, é frustrante a diversidade de ângulos de câmera desnecessários e figurinos sem sentido dentro da lógica do universo proposto. O male gaze fica evidente justamente por haver tantos outros exemplos de designs utilizados que não vão para esse caminho nos diversos capítulos da trama e até mesmo em obras posteriores de Watanabe, que oscilam entre cometer ou não as mesmas escolhas.
Após um final memorável e com toques de mistério, Cowboy Bebop ganhou um filme ainda mais visualmente impressionante que o anime de 2001 e uma fracassada adaptação em live-action feita pela Netflix em 2021. O sucesso do seriado no ocidente deu o título de clássico à obra e as influências dele podem ser percebidas não só em outras animações japonesas, como também em grandes blockbusters como Blade Runner 2049.
Cowboy Bebop, mesmo anos depois, acerta (e muito) no que se propõe. Com uma trilha sonora inesquecível e uma construção de mundo marcante pelo ponto de vista de diversos mercenários diferentes, a obra continua a conquistar fãs ano após ano. Há problemas, é claro, mas os acertos são certeiros como a mira desses personagens tão perdidos e solitários em uma galáxia vasta. Sente-se a dor no coração, mas o “adeus, cowboy espacial…” no final de vários episódios de longe não marca uma despedida para a série. O anime ainda carrega todo o peso de inovar e a audiência vai para sempre procurar algo semelhante à rapsódia única que Spike, Faye, Jet, Edward e Ein deram o sangue para trazer.