Gabriel Gomes Santana
Originalmente lançada pelo YouTube, Cobra Kai traz novamente as atuações de Ralph Maccio e William Zabka revivendo os clássicos papéis de Daniel Larusso e Johnny Lawrence, respectivamente. No entanto a empresa decidiu não continuar com produções que sejam originais e roteirizadas. Devido às interrupções das gravações, a Netflix viu uma possibilidade de compra dos direitos da produção, passando a disponibilizar a série e financiar sua terceira temporada, que será lançada em 2021.
Com um enredo nostálgico e igualmente irreverente, o seriado colocará o espectador mais fiel ao primeiro filme em contato com novas abordagens sobre uma rivalidade que dura 34 anos. Da mesma maneira, a condução dos episódios proporcionará ao público mais jovem a possibilidade de aprender com um clássico dos anos 1980 através de duas temporadas nada convencionais. Em outras palavras, a trama nada mais é do que um “clichê inovador”.
Os produtores Jon Hurwitz, Josh Heald e Hayden Schlossberg apostaram em uma série que conseguisse unir gerações, trazendo o apelo de uma narrativa antiga de sucesso que sabe dialogar perfeitamente com a era dos remakes. Para o trio criador de Cobra Kai, o intuito é que possamos dar segundas chances aos personagens, sem deixar de lado a rivalidade de duas figuras icônicas que se odeiam, e ao mesmo tempo, se complementam.
Nesta nova jornada o foco da história não está mais voltado à Daniel Larusso, e sim para Johnny Lawrence, conhecido por muitos como o antagonista do universo de Karatê Kid. Desta vez, o garoto mimado e valentão de Encino Valley – distrito da cidade de Los Angeles onde é ambientada a série – se encontra na casa de seus 50 anos de idade, tendo que lidar com o fracasso de sua vida pessoal.
Se engana quem pensou que Johnny Lawrence estivesse bem de vida, mesmo após ter deixado a Academia Cobra Kai de lado. Geralmente nos lembramos apenas do campeão da história, do mocinho ou ainda da jornada do herói. Fato é que o antagonista não está esquecido por completo, e reserva muitas curiosidades sobre como sua vida mudou desde o dia da derrota no fatídico campeonato karateca.
Ele agora trabalha como faz-tudo, desempenhando serviços de manutenção em mansões de Los Angeles e tendo que lidar com diversos problemas logo nas cenas iniciais da primeira temporada. Descobrimos que ele tem um herdeiro e devido a muitos percalços financeiros, como embriaguez e a falta de uma companhia amorosa, ele ainda enfrentará a rejeição de seu único filho, Robby. Geralmente os vilões têm filhos que simpatizam com seus pais, mas este não é o caso de Cobra Kai.
Mas e o nosso tão amado Daniel Larusso – conhecido por muitos como Daniel San graças à maneira como seu mestre Miyagi o tratava -, como ele está? O jovem aprendiz do grande sensei Noriyoshi Miyagi (Pat Morita) agora é um tiozão dono de uma concessionária automotiva. Bem-sucedido no ramo, Larusso ainda é reconhecido por muitos como alguém vitorioso graças ao karatê, que serviu como importante ferramenta para alavancar sua carreira como empresário.
Daniel Larusso diverge opiniões entre os fãs, tanto os de longa data, como aqueles que o acompanham durante a série. Daniel terá o dever de se desvincular aos fantasmas do passado. As lembranças de Mr. Miyagi são dolorosas para ele, uma vez que reverencia tudo o que lhe fora ensinado por seu mestre com gratidão, no entanto se vê despreparado para ser o novo sensei de Miyagi-Do Dojo.
Com a estreia de Cobra Kai, muitos fãs da saga Karate Kid passaram a questionar a índole de Daniel San, vista por uma parcela considerável do público como desonesta ou ainda imoral. Por conta dos episódios iniciais do seriado, que conduzem o espectador de maneira que este esteja na pele de Johnny, percebemos que há uma certa falta de empatia de Larusso pela situação de Lawrence (talvez não propositalmente).
O seriado consegue trazer uma boa inclusão aos personagens secundários, que servirão como novos aprendizes da velha guarda do karatê. Eu estou falando sobre os papéis de Miguel Díaz (Xolo Maridueña), Samantha Larusso (Mary Mouser) e Robby Keene (Tanner Buchanan). Os três irão se envolver em um triângulo amoroso complexo carregado de influências do passado.
Miguel Díaz incorpora o clichê do pupilo karateca que quer se livrar das ameaças de bullying sofridas no colégio. Mais do que isso, o rapaz terá que lutar para encontrar sua própria personalidade através da arte marcial japonesa. Ninguém melhor do que um degenerado como Johnny Lawrence para melhorar a autoestima do garoto, não é mesmo?
Cobra Kai constrói dramatizações simples através de novos elementos em contato com a temática old school. A proposta consegue aliar as experiências de um homem que viveu o auge da década de 1980 com a pureza de um jovem cheio de sonhos e bastante esforçado. Miguel é um menino que demonstra dificuldades na busca de uma auto aceitação e confiança em si mesmo. Já Lawrence é um cara bruto, que parou no tempo, e que precisa repaginar sua vida através do suporte de alguém que não o enxergue com maus olhares.
Toda trama precisa de uma paixão adolescente para se firmar como um sucesso clichê. Mas afinal, se isso não rendesse visualizações, A Barraca do Beijo não teria a popularidade que teve, e por isso Samantha Larusso se sagra como a adolescente com um dilema afetivo necessário para o enredo. Pelo sobrenome, já dá para ter uma ideia de quem ela é filha e em razão disso teremos muitos conflitos entre a garota e suas raízes.
Samantha, assim como Miguel, vive um período de descobertas. Cansada de estar rodeada por pessoas falsas, a jovem buscará ter por perto alguém que a faça se sentir confortável por ser quem ela realmente é, independente se esta pessoa será o filho ou aluno do arquirrival de seu pai. O bom é que ela sustenta muitos traços de personalidade de seu progenitor e assim, veremos que é chegada a hora de Daniel Larusso passar todo seu conhecimento karateca adiante.
Toda história de amor precisa de algum obstáculo, no caso eu estou me referindo a Robby Keene: a pedra no sapato de Miguel. O rapaz não teve nenhuma influência paterna para corrigir suas falhas e por isso, não lhe restou escolhas senão trilhar sua própria caminhada perto de más influências. A questão principal é que haverá um contato do mesmo com a família de Daniel Larusso. Devido a este acontecimento a chama amorosa irá tocar seu coração por completo, fazendo-o refletir sobre sua relação com seus pais e sua maneira de enxergar a realidade. Como mencionado parágrafos acima, o garoto é negligenciado por seu pai (Johnny Lawrence) e por isso acaba tomando atitudes bem rebeldes.
Toda dramatização de Cobra Kai abre margem a diversas reflexões, mas é inegável não se atentar ao fator autoestima e como ela é algo determinante na vida das personagens. Se por um lado temos Daniel como alguém bem-sucedido, isto é porque ele teve o apoio e o reconhecimento de pessoas que o associam a um acontecimento visto de forma positiva por todos na cidade: ter vencido o campeonato de karatê com um golpe icônico. Por outro lado, Johnny que havia feito de tudo para agradar seu mestre e mesmo assim acabou sendo rejeitado por todos incluindo ele, John Kreese (Martin Kove), sensei dos Cobra Kai.
Anos mais tarde, os poucos que se recordam de Lawrence o tem na memória como “o sujeito que perdeu a luta para Daniel Larusso”, diminuindo ainda mais a autoestima do protagonista. Disposto a mudar todo o legado agressivo que lhe foi concebido no passado, o mesmo deseja mais do que nunca fazer a coisa certa e ensinar a arte marcial a Miguel e outros alunos que se sentem rejeitados pela vida.
Sob o ponto de vista técnico, a produção é capaz de brincar bastante com a memória do espectador. Todos os cenários de Karatê Kid – A Hora da Verdade são reconstruídos, mas ainda são capazes de relembrar os anos 1980. Os flashbacks trazem à tona a riqueza da nostalgia do primeiro filme, assim como revelam muitos mistérios.
Algo bastante agradável em Cobra Kai é a trilha sonora que compõe as duas temporadas. Totalmente retrô e pensada com a mentalidade de Karatê Kid, as músicas fazem um excelente pano de fundo para a performance da trama. It’s my life, The Moment Of Truth, Paint it, Black , The Best, The Show Must Go On e muitos outros sucessos da década de 1980 são tocados.
Outro ponto de destaque no enredo está no uso do karatê como válvula de escape para os problemas pessoais. A arte marcial acaba sendo mais do que uma prática de luta, ela é uma filosofia de vida que auxilia na construção das trajetórias de Larusso e Lawrence, uma vez que ambos são orientados a seguir os ensinamentos que lhe foram passados por seus respectivos mestres (senseis), como uma espécie de guia espiritual.
No fundo, notamos que o foco da narrativa explora novos olhares aos personagens tidos como “bonzinhos” ou “vilões”. A série fará com que o espectador seja ousado e se arrisque a entender que todos os envolvidos na trama podem cometer erros, passando por dificuldades e tendo que lidar com seus traumas de maneiras distintas. Dificilmente os remakes de obras consagradas conseguem atender às expectativas das gerações passadas que acompanharam a originalidade das primeiras versões.
Porém o trio de quarentões Jon Hurwitz, Hayden Schlossberg e Josh Heald garantem uma excelente narrativa, confortando as viúvas da franquia de Karatê Kid. Ao ousar no clichê nostálgico, diferente pela reapresentação dos personagens, podemos dizer sem dúvidas que Cobra Kai é como o tênis All Star : um retrô que se renova sem jamais perder sua clássica essência.