But I’m a Cheerleader já dizia: identidade de gênero não tem a ver com orientação sexual

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Bárbara Alcântara

But I’m a Cheerleader (1999) é um filme que, a princípio, parece se tratar do clássico drama da saída do armário. A sinopse: Megan (Natasha Lyonne, a Nicky de Orange is the New Black) é uma adolescente americana padrão. Loira, magra, bonita, líder de torcida, com boas notas, que frequenta a igreja e tem um namorado de dar inveja. Tudo parece caminhar bem em sua vida. Até que ela descobre que a forma que olha para as amigas durante os treinos não é a mesma que olha para seu namorado enquanto o beija; que a atração física que sente é pelas primeiras e, não, pelo segundo – como era o esperado; que os seus gostos e atitudes não são assim tão “padrões”. Megan é lésbica.

O diferencial: essa revelação não é feita pela protagonista, como acontece geralmente nos filmes com a mesma proposta. A notícia percorre o caminho inverso. Um dia, quando a adolescente chega em casa, se vê confrontada por uma enxurrada de afirmações. “Você fica tentando fazer a gente comer esse tofu”, desabafa a sua mãe*. “Você não tem imagens de caras no seu armário, só esta [foto de uma mulher de top]”, replica uma amiga. “Você nem gosta de me beijar”, acrescenta o namorado.

Enquanto isso, todas as falas são confirmadas como sinais claros de homossexualidade pelo instrutor (interpretado por ninguém mais ninguém menos que RuPaul) de um acampamento chamado “True Directions”. O que os pais querem é que ela comece o programa de “terapia de conversão” oferecida por eles. O intuito? Curar a homossexualidade da filha. Como? Reforçando estereótipos de gênero.

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“Eu mesmo já fui gay. Agora sou um ex-gay, Megan”

Até então, Megan sequer havia pensado na remota possibilidade de ser homossexual. E admitir algo tão delicado se torna uma tarefa extremamente difícil. Primeiro porque ela se sente traída por todas as pessoas próximas a ela que arquitetaram o plano pelas suas costas. Segundo porque, em sua opinião, não havia nada de errado com a forma como enxergava as mulheres ou agia. “Eu não sou pervertida! Eu tenho boas notas. Eu vou à igreja. Eu sou uma líder de torcida!”, ela repete incansavelmente, tentando explicar que, com essas características, seria impossível ser homossexual. Lésbica é aquela que tem comportamentos masculinos, certo?

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But I’m a Cheerleader foi o primeiro longa-metragem da diretora Jamie Babbit. Talvez, por esta razão, as influências tenham sido tão perceptíveis. Quando criança, sua mãe era diretora de um programa de tratamento para adolescentes usuários de drogas, muito semelhante ao “True Directions”. Chamado de “New Directions”, ele funcionava como uma terapia reparadora para salvar os jovens que tinham perdido as rédeas de suas vidas, dar-lhes um novo rumo. Estava localizado em uma cidadezinha no interior do estado de Ohio, onde Babbit nasceu. Lá, a mentalidade das pessoas ia de encontro com o senso comum – e tudo o que ia contra era anormal, deveria ser curado; Incluindo a homossexualidade. Unindo uma coisa à outra…

O interessante do longa é que todas as propostas do acampamento são tão patéticas que a questão da homossexualidade acaba em segundo plano. É claro que sentir atração por alguém do mesmo sexo não é uma doença. Portanto, não há o que ser curado. E aí você acaba ignorando as tentativas falhas e esdrúxulas do instrutor ex-gay e da diretora do acampamento Mary Brown (Cathy Moriarty) de implantar a ditadura da heterossexualidade.

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É engraçado perceber que, no fim das contas, muitos dos participantes do programa iam para lá com o intuito de apenas conseguir um diploma (sim, eles se formavam e recebiam um diploma de “heterossexual” se conseguissem completar os 5 passos). Ou seja, o acampamento era muito mais um lugar para reprimir tendências do que, de fato, resolver o problema central.

Aí já se encontra um dos cutucões dados pela diretora: esses programas existem para tratar/solucionar transtornos ou para treinar soldados para o “exército do padrãozinho”, repetindo estereótipos indefinidamente? Além de ser também toda uma crítica à sociedade de aparências, que está mais preocupada em fazer com que as pessoas se encaixem ao que é considerado “correto” do que em dar espaço para que as pessoas se expressem de formas distintas e reais. Enfim.    

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Assim como em tratamentos de doenças, eles devem seguir 5 passos, entre eles admitir que você é homossexual e terapia em família

A dualidade “rosa x azul” está presente no cenário e permeia toda a narrativa. Às mulheres estão reservadas as coisas delicadas. Aos homens, as brutas. As atividades desenvolvidas pelos participantes do programa são as mais estereotipadas possíveis: mulheres aprendem a limpar a casa, a cuidar de bebês e a costurar, enquanto os homens aprendem a cortar lenha, a jogar futebol americano e a coçar o saco. 

O que acontece lá não é apenas a conversão de orientação sexual; é a legitimação da heteronormatividade – aquela ideia de que tudo que está fora do conceito “mulher = delicada e se interessa por homens, homem = bruto e se interessa por mulheres” é marginalizado, diferente. Ou seja, a mulher não apenas tem que sentir atração pelo homem, mas também precisa se enquadrar em mais uma série de papéis: a dona do lar, a subserviente, a condescendente, a maternal, entre tantas outras coisas. Por sua vez, o homem precisa ser viril, rude, contestador, provedor e mais uma porção de papéis que estamos cansados de ouvir desde crianças.

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Além de vestirem essas roupas ridículas representando Adão e Eva, eles deveriam encenar o ato sexual entre um homem e uma mulher (é claro que o homem fica em cima, né?)

Mesmo com todo o esforço por parte dos instrutores, era perceptível que o tratamento não funcionava: eles escapavam durante a noite para ir a “boates gays”, eram pegos em atos de sodomia nos alojamentos, e sentiam nítida atração por pessoas do mesmo sexo durante todo o tempo! Por mais que as mulheres e os homens entendessem os seus papéis sociais.

É que atrelar a orientação sexual à identidade de gênero é um erro muito comum (acho que isso está acontecendo na atual novela da globo). Isso deixando de lado toda a discussão em relação ao binarismo de gênero (Existe só o gênero feminino e o masculino? A gente não pode se identificar como algo fora dessas caixinhas? Se não, por quê? Etc). But I’m a Cheerleader traz, mesmo que sutilmente, essa questão à tona. Gostar de alguém do mesmo sexo define apenas a orientação sexual de alguém; agir de determinada maneira ou se enquadrar em determinadas características explicita apenas a identificação de gênero de uma pessoa. E uma coisa independe da outra.

Para coroar (e corroborar a especulação de que Babbit queria, de fato, provocar o público), em meio a diversas desistências, a única mulher completamente fora dos padrões da feminilidade – a que todo mundo bate o olho e pensa “Essa aí é sapatão!” – é a que, na reta final do programa, desabafa “Eu nunca fui gay”. Ao ser ridicularizada pelo instrutor “Olhe para você mesma…”, se referindo às roupas, rebate “Todos pensam que eu sou sapatão porque eu uso calças folgadas, jogo softbol e sou menos bonita que as outras garotas, mas isso não me faz gay.”. Tapa na cara!

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But I’m a Cheerleader é um filme cretino, porém necessário. Trata de um tema pouco abordado pela indústria cinematográfica, por um viés diferenciado. Te faz rir ao mesmo tempo que te faz pensar. Mostra o quão absurdos são pensamentos que, muitas vezes, são naturalizados pela sociedade. E, de brinde, ainda traz à tona uma discussão super atual (mesmo tendo sido lançado em 1999).

Um filme dirigido por uma mulher. Com temática homossexual. Não é drama. Não hiperssexualiza a mulher. Não é direcionado ao público masculino. Raridade cinematográfica, né?

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