Flora Vieira
Boa Noite Punpun, escrito pelo mangaká Inio Asano, foi meu retorno aos mangás físicos, e liberou um gosto que até pouco tempo estava enterrado em mim — o de ler gibis. Dessa vez, um com uma história adulta e temas complexos e profundos, do gênero Slice Of Life , que também descobri ser um dos meus gêneros favoritos. O Volume Um acompanha Punpun Punyama, que, com onze anos, vive o começo de uma adolescência conturbada e solitária.
Um elemento dos mangás tão importante quanto o enredo é, sem dúvida nenhuma, a arte. E aqui, ela é muito bonita, e também bastante metafórica. Representada como pássaros, de traços simples e crus, a família Punyama se destaca entre o cenário extremamente realista e o nível de detalhes no traço dos personagens ao redor.
Ela é metafórica porque essa escolha de estilo vai contra uma das características principais do protagonista: a de ser aparentemente ordinário, sem sonhos, objetivos ou individualidade que o diferencie dos outros. A metáfora também se completa com o fato do personagem não ter balões de fala e ter seus pensamentos mediados por um narrador, que, quando precisa, apresenta as falas de Punpun entre aspas.
Essa característica é explorada logo no primeiro capítulo, que é uma preparação pra tudo que vem pela frente. Punpun, acostumado com a rotina de violência entre seus pais — que, em vez de ampararem o garoto, brigam e gritam entre si — está na escola, quando o professor pede aos alunos para que escrevam sobre seus sonhos e ele não tem a menor ideia sobre o que escrever. Mais tarde nesse dia, conversa com a aluna nova da escola, Aiko (por quem ele logo se apaixona), que diz, basicamente, que a humanidade vai acabar porque a terra vai ser destruída, e em busca de evitar a extinção, os seres humanos deveriam ir pro espaço.
Punpun decide, então, que seu sonho é se tornar um astronauta. Isso se repete em várias situações durante o mangá, como quando um de seus amigos leva um fora e ele, mesmo apaixonado por Aiko, promete junto ao grupo nunca mais se encontrar com meninas. Punpun é um “maria vai com as outras”, e visivelmente sofre por isso, porque tem medo de decepcionar as pessoas — principalmente Aiko — ao longo da história. A relação do protagonista com a família revela ainda outras coisas, retratadas com a delicadeza e sensibilidade que a história precisa, por tratar dos assuntos que trata.
O mangaká consegue mostrar, por meio dos diálogos (que são também crus, e ainda assim, muito reais e bem escritos), tanto como Punpun enxerga o mundo, quanto como as coisas são de verdade. Um exemplo, também do primeiro capítulo: Punpun se levanta, desce as escadas de sua casa, e vê sua mãe machucada no chão. A primeira reação do pai, que percebe o filho descendo as escadas, é lhe dizer “Um ladrão entrou em casa!”, quando, na verdade, quem lê sabe muito bem que não há ladrão algum, e que a mãe tinha acabado de sofrer violência doméstica. O pai, claro, mentiu pro garoto, que não entendeu muito bem o que aconteceu ali.
Outro ponto importante do mangá é a representação dos adultos. Eles agem de forma estranha ao mesmo tempo que são desenhados com feições esquisitas, como se estivessem próximos de um ataque de nervos. O mangá, com elementos assim, procura discutir temas não só, mas ligados principalmente à cultura japonesa, como a padronização do indivíduo e a necessidade de adequação – que representam fortes pressões da sociedade e restringem as vivências dos japoneses, ao mesmo tempo que são um dos grandes motivos para o alto índice de suicídio do país. Punpun, mesmo sem entender, já se vê confrontado com todas essas expectativas.
Além do protagonista, o mangá não poupa esforços ao desenvolver alguns dos outros personagens da história. Alguns exemplos são o tio do garoto, Yuchi, e Aiko, sua paixão. Yuichi é o oposto dos outros adultos representados na obra, com postura imatura e acomodada diante de suas responsabilidades, enquanto é o único que eu vi se preocupar com o sobrinho.
Ao contrário do que sua postura parece revelar, ele também é retratado como vítima das pressões sociais japonesas, exibindo comportamento agressivo e pessimista para com a realidade. Aiko, por outro lado, ainda é só uma criança, e tem um desejo enorme de escapar – talvez por isso a obsessão com o espaço, no começo da história – e acaba por depositar essas expectativas em Punpun, coisa que influencia muito na relação dos dois.
Apesar da construção dramática, o mangá também acerta nos momentos de comédia. As expressões do protagonista e suas reações puras e inocentes, enquanto se descobre na adolescência, incluem boa parte desses momentos, e também evitam que a leitura fique maçante, tediosa ou muito cansativa. A habilidade de aprofundar os assuntos igualmente na comédia vale a pena ser mencionada. Ao mesmo tempo em que eu ria, me colocava no lugar do protagonista e entendia a dimensão que ele dá para coisas, por vezes naturais, por vezes absurdas, que acontecem com ele ao longo da história.
Boa Noite Punpun trata de temas como solidão, amadurecimento e negligência emocional com muita consciência e realidade, por meio de uma arte muito única que várias vezes me fez querer parar e observar os detalhes de cada quadrinho, com destaque para os desenhos que ocupam páginas duplas (e são sensacionais). Vale a pena aqui elogiar também a tradução do mangá, feita pela JBC, que ficou bem fluída e adaptada, respeitando abreviações e marcas de oralidade típicas do Brasil, valorizando a localização para o país, e acrescentando bastante na experiência. A jornada desse pássaro, mesmo assim, está só no começo.
achei um texto incrível; não conhecia muito sobre a obra em si, mas já ouvi comentários sobre, e acho que essa foi uma resenha que tanto explicou a beleza da história como me deu ainda mais vontade de lê-la….rsrsrsrs
Achei um texto incrível; não conhecia muito a obra, mas soube que valia a pena conferir, e a resenha me fez enxergar a beleza da história (e da arte. wow!) e me deu uma vontade enorme de comprar uma cópia….rsrsrsrs