Eli Vagner F. Rodriguez
Aqueles que já contemplaram a literatura como algo mais do que um passatempo obrigação ou tortura, que acreditam na ideia de uma formação pessoal pela arte literária ou ainda, aqueles que, ansiosos por adquirir cultura, acompanham as listas dos 100 melhores do século (filmes, livros, músicas), já se depararam com o desafio de Ulysses. A obra de James Joyce, por ter sido considerada pela crítica como o romance do século XX assusta e atrai. Joyce é considerado o escritor que teria desconstruído as tradicionais estruturas do romance, seja lá o que isso signifique para nós que não somos especialistas em crítica literária.
A própria palavra e referência pós-moderna “desconstrução” anuncia dificuldades. Na visão dos críticos mais conservadores Joyce teria abusado de alguns experimentalismos linguísticos. Por esse e por outros motivos teria seu lugar na história da literatura mais como tema de simpósios de especialistas do que propriamente como um autor a ser desfrutado pelo grande público.
Joyce abusa não só de experimentalismo, mas também de seu vasto conhecimento das línguas europeias (clássicas e modernas) criando neologismos e palavras-valise (palavra ou morfema que faz uma fusão de duas palavras) que podem cansar o leitor não especializado e fazê-lo desistir da leitura. Além disso, quando se lê que o seu romance mais famoso é inspirado na Odisseia de Homero e que traça um paralelo entre as aventuras de Ulysses (Odisseu) e o personagem Leopoldo Bloom durante apenas um dia na cidade de Dublin, o temor com relação à obra tende a aumentar. Um dia em aproximadamente mil páginas? O detalhamento minucioso de um dia na vida de um homem comum? De que forma o detalhamento de um cotidiano pode contribuir para o rol das grandes questões literárias? Por estas e outras razões a obra é considerada “o livro mais comentado e menos lido da história da literatura”.
Apesar desta designação paradoxal e do fantasma de complexidade que se formou sobre a obra vários aspectos que envolvem a história do romance o tornaram um livro, em certo sentido, extremamente popular. Ulysses é citado e celebrado desde pelo menos os anos 20. Alguns especialistas indicam 1925 o ano da primeira comemoração (três anos após o lançamento do livro); outros afirmam que foi na década de 1940, logo após a morte de Joyce, enquanto a hipótese mais aceita indica que foi em 1954, na data do quinquagésimo aniversário do dia retratado em Ulisses. O fato é que comemora-se todo ano e em vários lugares do mundo, o Bloomsday, data da épica jornada de Bloom pela Dublin de 1904 até retornar à sua casa e à sua Penélope (Molly Bloom).
Não deve ser o experimentalismo o aspecto central que afasta boa parte dos leitores desta obra polêmica, mesmo porque o maior exemplo de experimentalismo de Joyce não é o Ulysses. O exemplo máximo de ousadia criativa do autor foi o “Finnegans Wake” sobre o qual Jorge Luis Borges, outro criador de labirintos literários, afirmou: “Tomou [James Joyce] conhecimento de todos os idiomas e escreveu numa língua inventada por ele, uma língua difícil de entender, mas notável por sua estranha musicalidade.” (Jorge Luis Borges em Sete Noites). Segundo os especialistas em tradução, quanto mais fórmulas, soluções e criações (transcrições, diriam os irmãos Campos-Haroldo e Augusto), mais perto chegamos das intenções do autor. Nesse sentido quanto mais traduções de Ulysses em língua portuguesa mais possibilidades do autor ser aceito pelo público.
A boa notícia é que a Cia das letras, em parceria com a Penguin, com a série Clássicos, parece apostar em uma retomada do interesse do público pela leitura deste marco da literatura. A nova edição de Ulysses, com tradução de Caetano Galindo, professor da Universidade Federal do Paraná, traz um valioso estudo introdutório de Declan Kiberd que elucida várias questões que já foram discutidas pelos críticos ao longo de todo o século XX. O prefácio de Kiberd proporciona uma ótima contextualização e explica vários problemas interpretativos do texto, o que combina com a opção do tradutor de não fazer uso de notas ao longo da tradução. O público brasileiro, que já conhecia a corajosa e desbravadora (segundo Galindo) tradução de Antonio Houaiss e a tradução de 2005, da Professora Bernardina Pinheiro da Silveira, pode agora apreciar as soluções de Galindo à luz de um texto introdutório de 77 páginas. Se não bastasse uma nova tradução para renovar nossas investidas aos labirintos joyceanos, a mesma editora lançou em abril de 2016 um guia para a leitura de Ulysses, assinado pelo tradutor. (“Sim, eu digo sim”, de Caetano Galindo, Cia das Letras 2016)
Kibert elucida alguns enigmas e nos dá um fio de Ariadne para explorar os labirintos da obra. Vale notar que nos anos de recepção da obra muitos críticos se viram como detetives novatos em busca de sentido, ordem, estrutura e referências no romance. Descobrir, por exemplo, que Bloom, personagem central da obra, se desloca por um eixo noroeste de Dublin, afirma Kiberd, só foi possível depois de verdadeiras agruras interpretativas. Em seu intrincado paralelismo com a Odisseia o esquema da obra traça o périplo de Bloom, análogo ao de Ulisses e repete, em situações que o leitor deveria “desvendar”, algumas passagens fundamentais da épica homérica. Este aspecto sempre envolveu o livro em uma aura de decifração do tipo quem é quem, isto é, quem no texto de Ulysses representa quem na Odisseia. Obviamente a leitura de Ulysses nos coloca, como pressuposto, uma lição de casa, a leitura da obra de Homero.
Mas o que o professor Galindo, o tradutor, propõe é apresentar o Ulysses, antes, como o que ele realmente é: um romance, e não um “quebra-cabeça exemplar”, por isso abre mão de notas. É a introdução de Kibert, como afirmamos, que nos dá várias pistas para uma primeira incursão no texto. A primeira e que pode ser, para alguns, uma ideia inusitada, seria a aversão de Joyce pelo tema das batalhas. A inspiração homérica pode sugerir, a princípio, que Joyce poderia ter sido um helenista que defendesse o ideal ético-estético; espada, sangue e heróis. Aquele helenismo saudosista, supostamente aristocrata, que já atraiu militares, artistas e acadêmicos. Vale lembrar que esta nostalgia helenista nos legou figuras tão antagônicas como Nietzsche e Hitler. Ao contrário, segundo Kibert, Joyce preferia aparentar um desinteresse por batalhas, as abstrações heroicas pelas quais morriam os soldados pareciam soar cada vez mais vazias para ele.
É preciso notar que dentre as obras de Homero a Ilíada é propriamente o poema das batalhas e da guerra de Tróia, na Odisseia o foco é a viagem de Odisseu de volta à Itaca. Vale notar também que a Ilíada é um texto muito mais indigesto para nossa sensibilidade moldada pela estrutura romanesca moderna do que a Odisseia que apresenta de saída um plano dramático a partir do qual fica muito mais definido o lado para o qual vamos “torcer”.
Segundo Kibert, esse distanciamento de Joyce com relação a temas bélicos teria sido o efeito da guerra sobre sua geração. O escritor tinha medo “dessas palavras grandes que nos deixam tão infelizes”. Na concepção de Joyce, que se mostrava contrária à própria tradição literária Irlandesa e, por que não, contrária a toda tradição literária europeia, era que o épico deveria conviver necessariamente com a futilidade da guerra. Há, aqui, uma contradição que Kibert explora como uma chave para a interpretação das opções de Joyce pelo cotidiano minucioso. O detalhismo é uma opção estética de franca oposição ao solene e grandioso. Para Joyce, o preço da postura e do discurso heroicos, característicos do gênero épico é, em todas as civilizações, a violência. O corpo e o cotidiano, estas duas realidades imediatas, são os que sofrem com os ideais pronunciados com pompa nos palanques, muitas vezes por quem não luta nos campos de batalha. Segundo Kibert, isto não aparece de maneira panfletária no texto e sim nas escolhas estéticas e estruturais.
Joyce teria escrito um épico do corpo, um relato minucioso de um dia como uma lembrança página a página de que a normalidade do Ulysses moderno seria uma repreensão contra o mito do heroísmo militar antigo. Na verdade o que Joyce pensava é que a busca pelo heroísmo era uma grande vulgaridade (o autor afirma em uma carta a seu irmão), ideia estranha até hoje se pensarmos no sucesso não exatamente surpreendente dos heróis modernos. Além deste distanciamento o escritor não substituía a ilusória estrutura do heroísmo pela força da paixão individual, que poderia ser outra saída para a exaltação de um personagem. Nesta perspectiva, o minucioso é representativo do que é real e efetivamente importante para vida cotidiana (afinal só existe a vida cotidiana). “O que alguém faz durante um só dia é infinitesimal, no entanto, é infinitamente importante que o faça.” Joyce está se opondo, também, a certa noção de honra baseada nos sórdidos códigos do militarismo cavalheiresco que, se hoje praticamente não conhecemos, em sua época ainda era bastante influente na Europa. Hoje, até onde sabemos, ninguém em sã consciência “convida” um desafeto para um duelo com pistolas.
Com Ulysses, Joyce estaria marcando o terreno da nova literatura contra uma concepção arcaica, sensacionalista e heroica do próprio povo irlandês. Além disso, Joyce tinha uma convicção que até hoje é uma característica muito pouco compreendida em toda a literatura pelos nacionalistas, a ideia de que o maior dever de um escritor é o de insultar, mais do que bajular, a “vaidade nacional”. Afinal o insulto proporciona, na maioria das vezes alguma luz sobre nossos autoenganos. Negar o mitológico Cúchulain (herói irlandês) também era uma maneira de se opor a apologia da violência e da batalha como caminho de libertação de um povo. Em suma, Joyce era refratário a tudo aquilo que cantamos nos nossos hinos nacionais sobre os heróis que morreram pelo país. Seu herói, por outro lado não seria um homem de inteligência em oposição ao homem de armas. Nem mesmo um libertador espiritual. Nem Jesus nem Fausto, nem mesmo um Hamlet. O primeiro seria incompleto por não ter cumprido a coisa mais difícil na vida de um homem, que “segundo Joyce”, seria conviver com uma mulher. Jesus era solteiro, não teria vivido esta experiência formadora. Nem Fausto, negociando com o diabo, teria sido o ideal do herói de Joyce. Hamlet é, e sempre será, o filho, não serve. Odisseu é pai de Telêmaco, marido de Penélope e viveu inúmeras aventuras pelo mundo. Odisseu é o homem completo. A composição deste herói, alguém pode dizer, não é tão complexa assim, Ulysses é um aventureiro sagaz, nada mais do que isso. Na verdade, segundo o próprio escritor, a ideia de seu personagem era bastante simples, o método do romance que seria complicado.
Por falar no método, Joyce pretendia, com ele, dar ao corpo um reconhecimento igual ao que fora dado à mente na tradição intelectual e literária anterior. Nesse sentido, Joyce efetua uma anatomização do corpo em que se baseia o plano de Ulysses. O resgate do corpo, dos apetites, da irracionalidade e das obscuridades das atividades prosaicas e degradantes (fisiologia e higiene) como foco, origem e causa da “racionalidade discursiva”, na época de Joyce ainda é algo estranho ao ambiente da literatura. Neste aspecto Ulysses rompe com certa tradição filosófica ocidental, tradição essa que vigorou até a filosofia moderna. O resgate do corpo propriamente dito se dá a partir dos dois maiores representantes da chamada corrente voluntarismo da filosofia, a saber, Schopenhauer e Nietzsche. Para o primeiro o corpo é o lugar no qual e a partir do qual podemos conhecer a essência do mundo dos fenômenos (vontade), para o segundo o corpo seria uma grande razão que não se limita aos ideais de um racionalismo ingênuo.
Joyce associa cada capítulo a um órgão do corpo e as descrições de atividades menos nobres da nossa vida cotidiana não são ocultas no texto. Novamente as minúcias do frágil funcionamento do organismo em lugar da idealização do homem por palavras ou realizações heroicas. Esta associação de um capítulo a um órgão do corpo não é o único esquematismo da obra. Joyce associa a cada capítulo uma passagem da Odisseia, uma hora do dia, uma arte, uma cor, um símbolo e uma técnica. O que nos parece bastante complexo a primeira vista pode ter a interpretação facilitada pelos esquemas estruturados pelos estudiosos do romance (o próprio Joyce esboçou um esquema da obra). Na edição da Cia das letras pode-se encontrar nas páginas iniciais do romance um esquema de Ulysses cuja fonte remonta a “James Joyce’s Ulysses”, de Stuart Gilbert, Penguin Books, Hramondsworth, 1963, p. 38.
Leopold Bloom é o homem comum, não pertence à grande história, é ninguém, como Odisseu diante do Ciclope, mas é um homem que abraçou os valores humanos. A força física é substituída pela força moral de ser um homem comum, que necessita de tanto heroísmo no dia a dia quanto Aquiles em suas lutas, que tenta se livrar das tentações das sereias a cada esquina de Dublin e em cada fase de sua história. Na Odisseia Ulysses omite sua identidade para, astutamente, se livrar do Ciclope. Quando, porém, chega até o barco e se vê livre do perigo, se gaba de ser um herói e dirige ao Ciclope suas palavras de orgulho “Sou Ulysses, filho de Laertes , rei de Itaca”. Neste momento está selado seu destino de vagar pelos mares antes de chegar ao seu objetivo. Tendo a identidade de seu inimigo, o Ciclope pôde se comunicar com Poseidon e solicitar o martírio do herói. A astúcia não venceria a soberba. Em Ulysses, o capítulo “Ciclopes” se dá em uma taverna, o órgão é um músculo e a arte é a política, o símbolo é o feniano e a técnica é o gigantismo. Por este exemplo pode-se imaginar como o texto pode ser divertido quando se tem o esquema elaborado pelo próprio autor para nossa orientação.
A nova geração de leitores conta com o testemunho crítico de um de seus escritores favoritos, Anthony Burgess, autor de Laranja Mecânica. Burguess afirma que, “A aparente dificuldade faz parte da grande anedota de Joyce; tudo o que é profundo é em geral expresso em sonoros termos de Dublin; os heróis de Joyce são homens humildes. Se alguma vez houve um grande escritor popular, Joyce foi este escritor”. Anthony Burguess escreveu um livro fundamental para a fortuna crítica de Ulysses, “HOMEM COMUM ENFIM – Uma introdução a James Joyce para o leitor comum”, Cia das Letras, 1994.