Até O Último Homem: quão intenso ecoa na história o ideal de alguém obstinado?

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Guilherme Reis Mantovani

Até o Último Homem (Hacksaw Ridge) nos apresenta a história verídica de Desmond Doss (Andrew Garfield), um interiorano norte-americano que opta por ingressar no Exército dos Estados Unidos pouco depois de conhecer Dorothy Schutte (Teresa Palmer), uma enfermeira pela qual se apaixona de forma irrefreável e recíproca. Devido à sua máxima de que a fé é a melhor alavanca para o ideal que fomenta seu caráter e calca seus princípios morais e religiosos – premissa esta moldada por traumas do passado, resultado de um ambiente familiar profundamente conturbado – o religioso Desmond encara uma batalha pessoal contra a hierarquia, o sistema e o preconceito do Exército ao expor sua vontade de se envolver na Segunda Guerra Mundial como médico de combate sem um único rifle para se proteger, disposto a salvar o maior número de vidas e decidido a não tirar nenhuma.

O filme, que concorre em seis categorias ao Oscar (incluindo melhor filme), tem seus três atos muito distintos entre si, promovendo uma estrutura simples, mas exageradamente heterogênea, o que compromete sua linearidade. O primeiro ato é basicamente caracterizado por um romance leve, que apesar de suscitar uma química agradável e natural entre Desmond e Dorothy – ambos com atuações condizentes e muito satisfatórias – possui mais tempo de tela do que o necessário. Apesar disso, o maior defeito do longa fica ao encargo de alguns furos de roteiro, sendo o mais acentuado deles o “sumiço” inexplicável do irmão de Desmond na trama após este ingressar no Exército.

O segundo ato acompanha o personagem principal na Academia Militar das Forças Armadas dos Estados Unidos. Cultivador de uma utopia fadada ao fracasso do ponto de vista de seus colegas militares e de seu pai (Hugo Weaving) – aqui, é notável a brilhante atuação de Weaving, que dá vida à um veterano da Primeira Grande Guerra atormentado pelos horrores que vivenciou e, por consequência, rendido ao álcool; certamente um dos melhores e mais complexos personagens do filme – o protagonista é alvo de preconceitos desprezíveis e inexplicáveis perante a decência (algo tão corriqueiro nos dias atuais e tão lamentavelmente intrínseco ao ser humano, embora não menos digno de nojo) durante seu treinamento.

No que se refere ao contexto histórico no qual o longa-metragem está inserido e o palco para o terceiro ato da projeção, após avanços da marinha norte-americana durante as campanhas finais da guerra, Okinawa – uma província sulista do Japão cuja posição geográfica a torna uma importante via de acesso ao coração do território insular japonês –, passou a ser um alvo fundamental a ser conquistado. Sendo assim, Desmond e sua divisão de fuzileiros navais são enviados para capturar um desfiladeiro estratégico que dá nome original ao filme para então tomar a província em definitivo.

Quando a batalha pelo desfiladeiro finalmente se inicia, somos “presenteados” com uma primorosa cena de ação que se aproxima das excelentes sequências de O Resgate do Soldado Ryan. O diretor Mel Gibson – uma figura sempre controversa em Hollywood, mas digno de nota pelos aclamados A Paixão de Cristo e Coração Valente – não poupa o telespectador e impõe um ensejo longo e visceral de violência contínua, traduzindo de maneira realista e minimalista aquele que foi um dos mais terríveis teatros da Segunda Guerra Mundial: justamente as intermináveis batalhas pelas ilhas do Pacífico contra as inflexíveis forças japonesas.

Apesar disso, tal abordagem não soa como um elemento gratuito, desnecessário e sádico. É apenas a realidade crua e sanguinária de uma batalha decisiva – isto é a guerra. Corpos partidos, mutilados, incinerados; confusão irremediável, horror e sangue. Medo, fúria e desespero. Por outro lado, há de se apontar uma problemática acentuada na retratação bestializada dos japoneses, incorporados como monstros face à já comum – embora não menos incômoda – premissa da “força estadunidense de defesa da liberdade e da humanidade”.

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Retornando ao ponto de vista técnico e iconográfico, um aspecto interessante é o fato de que o diretor intercala takes aéreos para o espectador entender o desenrolar do conflito de maneira coesa, independente e, de certa forma, estratégica; e takes que nos transportam para o âmago da balbúrdia, bem ao lado dos personagens. É simplesmente impossível não sentir-se tenso na cadeira ou no sofá com a cena sanguinária e, justamente por isso, é comicamente comum ouvirmos (seja da nossa cabeça ou de companheiros de filme) alertas desesperados para o protagonista quando o notamos completamente vulnerável em meio ao caos instaurado pela batalha: “Pelo amor de Deus, pega numa arma!”, “Ela não morde.”

Pois este segundo argumento é justamente utilizado por um dos companheiros de Desmond no intervalo entre duas batalhas. A resposta do mesmo é muito simples, latente e tocante. Resgata-nos de uma noção generalizada em um meio como aquele que a violência exige violência para ser combatida, recorda-nos inclusive dos conflitos atuais mundo afora e engrandece de maneira colossal o ideário e a firmeza do protagonista: “Morde sim. Basta olhar ao redor.”

Os verdadeiros Dorothy e Desmond Doss: casais que a guerra não separou
Os verdadeiros Dorothy e Desmond Doss: casais que a guerra não separou

O final da projeção sintetiza a mensagem que o filme suscita ao revelar depoimentos dos personagens já na contemporaneidade, em recordações sobre o que acabamos de ver em tela – o que não torna o momento menos emocionante. Deve-se ressaltar de maneira enfática a última citação do próprio Desmond Doss, que resgata um momento icônico do filme e que tornou literal a maravilhosa frase do poeta germânico-austríaco, Emanuel Wertheimer: “Até a velhice sorri, quando se lhe fala do ideal”.

Afinal, até o momento mais desesperador de sua vida, a oração de Desmond não visava sua exclusiva proteção, tampouco a ruína do inimigo ou mesmo um mero lampejo de fúria, mas sim a busca por uma força espiritual, pessoal – e por que não, divina? – para que pudesse realizar a mais altruísta das ações, em um cenário caótico e infernal. A mais humana das ações, que contradisse o contraditório preconceito que sofrera: salvar mais uma vida.

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