“O que se passava, afinal, no mundo dos adultos, na cabeça de pessoas extremamente racionais, em seus corpos carregados de saber? O que os reduzia a animais dentre os menos confiáveis, piores do que os répteis” Página 169
Isabella Siqueira
A Vida Mentirosa dos Adultos surge após um hiato de 5 anos de uma das maiores vozes da literatura contemporânea mundial: Elena Ferrante. O novo romance da escritora italiana chega ao Brasil em setembro pela editora Intrínseca. Após ler outras obras da misteriosa autora as expectativas eram altas, e mais uma vez fiquei encantada. Agora com esse relato sobre a adolescência, e a destreza com que Ferrante aborda as nuances da jovem mulher em conflito com si mesma.
A temática que conquistou os fãs da Tetralogia Napolitana surge desta vez sob uma nova ótica. Ainda sobre a identidade feminina do século XX, agora a trama se passa na dolorosa transição de menina para mulher. Com uma escrita crua, sem meias palavras ou qualquer ato para romantizar essa fase, somos apresentados a Giovanna e seu conturbado processo de entrada na adolescência.
É importante ressaltar ainda como Ferrante aborda as temáticas da juventude e a realidade como são contadas. Assim chama a atenção como a autora destaca a descoberta da sexualidade, o fim dos heróis de infância (principalmente nossos pais), e a grande turbulência emocional regada à lágrimas e decepções desse período.
Giovanna ou Gianni, filha dos professores e estudiosos Andrea e Nella, cresceu protegida na esfera intelectual e confortável na Via San Giacomo dei Capri. E, diferente dos cenários de violência e pobreza que tínhamos em seus livros anteriores, agora Ferrante opta por transportar a história para o bairro classe média de Vomero, parte alta de Nápoles, e não mais na periferia napolitana.
“Dois anos antes da sair de casa, meu pai disse à minha mãe que eu era muita feia.” Essa frase análoga à um tapa no rosto, tanto no leitor quanto na protagonista, inicia a trama e, consequentemente, marca o fim de uma infância perfeita. O romance entrega justamente as dificuldades da adolescência.
A insensível frase era, na verdade, uma comparação com uma tia e irmã de seu pai, Vittoria, parente que apesar de ter visto pouquíssimas vezes, representava uma figura monstruosa por ser feia, má e ignorante. Tal comparação enervou em Giovanna um desencanto consigo mesma e uma espiral de obsessões que incluíam a queda de sua autoestima, física e intelectual. Contudo, surge também a curiosidade de saber que tipo de mulher se tornaria, e assim revela aos pais o desejo de conhecer a famigerada tia.
Os recorrentes encontros com Vittoria, uma mulher grossa e amargurada pelos dramas do passado, serão marcantes justamente por abrir os olhos da menina para as mentiras dos adultos a sua volta. A primeira lição da tia é clara: Giovanna precisa observar seus pais com criticidade. E enquanto descobre o lado rude e manipulador de seus heróis de infância, a vida da jovem começa a ruir em meio a tantas aflições, repete na escola, se isola de todos e fica cada vez mais insegura com sua aparência.
Com o passar da obra surgem também algumas tramas paralelas, mas o que chama atenção é o propósito da autora em discorrer tanto sobre os cenários e os dialetos das personagens sempre de alguma forma relacionados. Como em seus livros anteriores, Ferrante continua apontando as diferenças sociais entre aqueles que falam um italiano encantador e outros que falam um dialeto vulgar comum das periferias e áreas industriais.
Elena Ferrante mesmo depois de décadas ainda escolhe permanecer em silêncio, contudo, ela continua provando a força de seus livros apesar de quem quer que seja essa misteriosa figura. A ficção de suas obras se mistura com a própria ficção que envolve seu pseudônimo. A chamada febre Ferrante não é toa, são obras que se provam geniais com ou sem a figura de Elena.
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