Guilherme Dias Siqueira
Entre 1600 e 1904, onde hoje se localiza o Benim, existia a monarquia do Reino do Daomé, uma nação soberana que, apesar de ser rica em recursos agrícolas, tinha sua economia baseada no comércio de pessoas escravizadas para as colônias europeias nas Américas. O reino vivia em uma espécie de guerra fria com o vizinho, o Império de Oyó, duas vezes maior em população e que controlava o principal porto da região. É nesse pano de fundo que A Mulher Rei (2022), de Gina Prince-Bythewood, se inicia.
Na história, Daomé está sob o comando do jovem, porém maduro, rei Ghezo (John Boyega), que tem que lidar com o aumento da tensão com o país vizinho e as pressões das potências europeias, que querem impedir que o tráfico de cativos cesse. Ghezo deposita sua máxima confiança em sua general, Nanisca, interpretada magistralmente por Viola Davis, que lidera a elite do exército do país: as lendárias guerreiras Agojie.
Talvez por pressão, ou por lucratividade, Hollywood tem dado, nos últimos anos, mais espaço às minorias, especialmente a população negra, em filmes que saem da superficialidade de estereótipos ou que fogem dos resumos simplistas da vida de pessoas não-brancas às opressões vividas por elas. Assim, The Woman King vem para enterrar de vez qualquer consciente comum e errôneo da existência onipresente da miséria no continente africano.
Muito dessa qualidade narrativa, de fugir dos estereótipos, se dá pela direção de Gina Maria Prince-Bythewood, que começou sua carreira como roteirista em seriados de TV dos anos 1990 e no Cinema com Além dos Limites (2000), longa pelo qual ganhou o Independent Spirit Awards de Melhor Roteiro de Estreia. Ostentando na carreira o Black Reel Awards, um dos mais importantes prêmios do Cinema Afro-americano, a diretora soma em seu currículo, agora com A Mulher Rei, os títulos de Cineasta do Ano pela American Cinema Editors (ACE) e Melhor Diretora pelo African American Film Critics Association, sendo também uma das homenageadas no Gotham Awards 2022. Contudo, ela se juntou à Viola Davis nas ausências sentidas no Oscar 2023; no caso de Davis, a presença na maior premiação do Cinema parecia certa.
Filmes como Pantera Negra (2018) e sua sequência têm uma ambientação que nos insere em uma nação africana futurista que, graças a um milagroso minério, nos permite viajar em naves e trens flutuantes. Por outro lado, o longa de Prince-Bythewood aposta num cenário historicamente fiel com figurinos realistas, ao mesmo tempo preciosista, que reproduz as estampas usadas na África Ocidental do período. Esse tipo de apresentação enriquece a visão sobre o continente e enfatiza que sua riqueza não está só em um hipotético futuro mas em um vibrante presente e um glorioso passado.
O anti-imperialismo de A Mulher Rei é, sem dúvidas, um grande destaque, tendo em vista que muitas tentativas anteriores de abordar a temática acabaram por ultra simplificar o assunto, ao ponto de resumir o problema à colonização “de facto”: a potência europeia assume o controle total do país (o que, em um tempo futuro ao do filme, aconteceria com Daomé). Na trama, a relação da nação com o Império Britânico pode se aparentar amistosa em um primeiro olhar. A verdade é que os europeus tinham, na pólvora e nos navios, uma vantagem bélica, que não deixava o rei Ghezo em uma posição de negociador e, com essa influência, utilizaram a Guerra contra Oyó para promover o tráfico escravagista.
Viola Davis, a artista EGOT indicada quatro vezes ao Oscar e vencedora em 2017 por seu papel em Fences, está em sua melhor forma. Este é um filme de ação, e a coreografia das lutas é visceral, o que exigiu uma altíssima performance física de Davis para além de sua excelente atuação emocional. Há uma dedicação especial de Thuso Mbedu, a atriz protagonista sul-africana que interpreta Nawi e estreia na carreira internacional com um papel de doçura e força em mesma intensidade. Dando vida ao jovem rei, John Boyega também traz firmeza e rigor no papel.
O filme escancara o esmero de toda equipe, cuja bilheteria de quase 100 milhões de dólares teve o Brasil como um dos protagonistas; curiosamente, Daomé foi o primeiro país a reconhecer a independência do Brasil. Ao fim, A Mulher Rei evidencia que a representatividade não é uma moda passageira, mas sim um marco de recomeço em que histórias originadas fora do eixo América do Norte—Europa ganham reconhecimento – do público, da crítica e, idealmente, em um futuro próximo ou em algum momento, da Academia.