Ludmila Henrique
O que faz um evento de RPG de mesa ser tão importante nos dias de hoje? Seria a lembrança dos contos de fadas de quando éramos crianças, as histórias criadas e os desafios presentes nos jogos, ou talvez, seja apenas o prazer de passar aquele momento com seu grupo de amigos e aproveitar o máximo daquele tempo? Independente da sua motivação para participar das partidas, A Lenda de Vox Machina (The Legend of Vox Machina), nova animação do Amazon Prime Video, compõe toda magia e reviravoltas existentes nos jogos de tabuleiros.
Em The Legend of Vox Machina, somos apresentados ao grupo de heróis do mesmo nome do seriado, Vox Machina, composto por sete personagens inteiramente diferentes uns dos outros. Assim como peças de xadrez, cada integrante tem sua própria característica, personalidade e objetivos. Possibilitando o desenvolvimento de um batalhão de desajustados e, ao mesmo tempo, os diferenciando dos outros cavaleiros clássicos.
A premissa da série se originou a partir da primeira campanha de Dungeons & Dragons (D&D) da websérie Critical Role, onde a narrativa dos personagens começou a ser desenvolvida logo em sua transmissão de estreia no ano de 2015. Após conseguirem os direitos autorais do show, parte das produções multimídias realizadas foram publicadas nas próprias redes sociais do Critical Role, com lives entre três a quatro horas no Twitch e YouTube.
O andamento inicial para a realização da animação, surgiu a partir de um financiamento coletivo de 750.000 dólares no período de 45 dias para a elaboração de um curta de 22 minutos, dedicado para cada personagem específico. Contudo, para a surpresa dos próprios criadores, em menos de uma hora da abertura do projeto essa meta foi concluída. Depois de 24 horas, eles atingiram cerca de 4,3 milhões de dólares em arrecadação, podendo financiar mais de quatro episódios para a série animada.
Logo após as metas inaugurais serem concluídas, outros objetivos foram direcionados ao financiamento. A primeira foi expandir o plano inicial de episódios únicos dos personagens para uma animação completa, abordando outros arcos presentes na primeira até a segunda campanha de The Legend of Vox Machina. A produção executiva do seriado foi realizada pelos próprios integrantes do Critical Role, além de integrar Jennifer Muro, co-produtora de Star Trek: Prodigy, no grupo de escritores e Brandon Auman, roteirista de As Tartarugas Ninja e Star Wars: A Resistência, no cargo de showrunner. Ademais, o design da série ficou encarregada nas mãos do diretor de arte Phil Bourassa, artista conhecido por seu trabalho em grandes produções do universo DC, como Justiça Jovem e Batman: Silêncio.
De acordo com o livro sagrado dos jogadores de D&D, todas as figuras principais pertencem a uma classe no role-playing game. Por exemplo, os gêmeos meio-elfos, Vax’ildan Vessar (Liam O’Brien) e Vex’ahlia Vessar (Laura Bailey): Vax é classificado no RPG como Ladino, figuras altamente ágeis e com grandes habilidades mundanas – algumas vezes sobrenaturais – para alcançar seus objetivos, além de especialista no manuseio de ferramentas e de desarmar armadilhas.
Apesar do posto direcionado a Vax, em infinitos momentos os roteiristas desfrutam desses princípios para contradizer algumas características pertencentes aos Ladinos, primordialmente em ocasiões na qual o gêmeo é necessário para uma tarefa – muitas vezes simples, como abrir uma porta. Isso transfere um ar de ironia cômica para os espectadores que já são habituados com as divisões de atributos desses personagens de RPG. Porém, do mesmo modo que brincam com esses padrões, nada pode voar muito longe do ninho. Vax também esbanja confiança e múltiplos talentos durante a jornada da equipe, adicionando um equilíbrio entre o bom humor e a fidelidade dos traços para o seguimento da animação.
Diferente de seu irmão, Vex é conhecida como Ranger (patrulheira), obtém grandes instintos de caçadora e uma execução excepcional em combate, inclusive, se autodenomina como líder da equipe. Não que seja necessário explicitar sua liderança para o público. Com a sua postura e a aura de chefia que paira sobre Vex, já fica evidente quem ela é, e também qual é o seu papel dentro do grupo. Em todos os frames, ela apresenta seu grande dom para ditar as próximas ações do Vox Machina e mesmo não estando cem por cento correta em uma decisão, diligentemente consegue recuperar as rédeas da situação.
Também temos a presença de Pike Trickfoot (Ashley Johnson), gnomo pensada para ocupar o papel de clériga do Vox Machina, Pike conjura a magia da divindade Everlight – deusa da cura e da redenção – por meio de suas preces e devoção. Destinados ao papel de alívio cômico no seriado, contamos com a figura de Scanlan Shorthalt (Sam Riegel) e Grog Strongjaw (Travis Willingham). Scanlan, assim como Trickfoot, também é um gnomo e pertence a classe bardo – seres que através de sons e palavras, criam canções que se materializam em objetos ou em outras formas por meio de encantamentos. Já, Grog é denominado como Golias, seres de combate e grande força física, mas no fim, é um dos personagens mais sensíveis da party e que só precisam tomar uma cerveja no fim do expediente.
Concluindo a apresentação dos integrantes, é a vez de mencionar a druida Keyleth (Marisha Ray) e o gunslinger Percival de Rolo (Taliesin Jaffe). Por pertencer a família dos druidas, Keyth possui forte conexão com os animais e a natureza, podendo conjurar magias ligadas a essas forças elementais. Nos momentos de tela na qual Keyleth utiliza de seu poder, são os minutos mais instigantes e também apreensivos em certo ponto.
Mesmo sendo uma das participantes mais fortes da animação, os medos de falhar ou talvez ocasionar um problema maior que o vigente, acabam a consumindo por total. E essas inseguranças existentes, pouco aprofundadas nessa primeira temporada, acabam se sobressaindo basicamente em quase todas as batalhas que necessitam de sua ajuda ou liderança. Ainda assim, nos instantes que ela procura seguir seu coração e não as vozes negativas que flutuam sobre ela, seu poder inimaginável dita quem finaliza aquele duelo como vencedor. Isso evidencia toda a potência que está guardada dentro dela.
Por fim, temos Percival, também conhecido como Percy. Ele é apresentado como a figura do pistoleiro: humano com habilidades de engenharia. Inicialmente Percival não é um dos personagens mais cativantes em cena, por obter um caráter mais fechado e misterioso, pouco se sabe sobre ele fora o seu grande interesse em etiqueta e uma certa devoção pela realeza. É com o decorrer dos episódios que fica mais explícito quais são suas reais motivações, e o pretexto de sua admiração pelo reino.
The Legend of Vox Machina lançou seus três primeiros capítulos no fim de janeiro de 2022 e já em sua estreia, a trama que mescla histórias clássicas da fantasia com humor, obteve 100% de aprovação pela crítica especializada no Rotten Tomatoes. A obra, composta por doze episódios divididos em blocos lançados nas sextas-feiras seguintes, complementa o combo de animações com classificação R, lançadas recentemente pelo Amazon Prime Video.
O streaming da Amazon tem uma característica única em realizar projetos onde o enredo apropria-se de grandes clichês presentes no audiovisual – como a famosa imagem do super-herói e as múltiplas características dos contos de fadas – e refaz esses estereótipos de forma cômica e, algumas vezes, revertendo as próprias qualidades que tornam esses personagens tão conhecidos modernamente. Parte dessas produções é a animação Invincible e a série The Boys, dois marcos que brincam com o formato que as HQs são realizadas.
Assim como outros nomes no catálogo, The Legend of Vox Machina não poderia ser contrária a isso. Contando com dois arcos diferentes em sua narrativa, os três primeiros capítulos tem o intuito de adicionar um parâmetro para os telespectadores que não são familiarizados com o Critical Role. Neles, são apresentados o universo que a série está inserida, os personagens do elenco e o tom do material; se os produtores procuraram transportar a animação de modo mais a sério, com temas mais fortes ou pretendem apenas levar o enredo para o lado mais humorístico.
Com o teor mais introdutório, a seção inicial perpassa por grandes aspectos dos contos de fantasia. Elementos familiares transitam do início ao fim, como a presença de tavernas, castelos, cavaleiros do reino e dragões. O segmento inaugural percorre os trajetos desses guardiões desequilibrados, em sua primeira missão para derrotar o vilão que sondava Exandria e outras terras vizinhas. Essa atribuição destinada ao grupo se assemelha ao percurso de Atreyu, personagem do livro A História Sem Fim, em busca de achar uma cura para a Imperatriz Criança e também salvar o reino de Fantasia.
Encerrando o primeiro arco, os outros nove episódios abordam uma nova história, na qual Percival De Rolo se encontra como protagonista da narrativa vigente. No final do terceiro capítulo, a vinda dos vilões Delilah Briarwood (Grey Griffin) e Sylas Briarwood (Matthew Mercer) foi anunciada. Duas personalidades com características vampirescas e que obtém suma importância na construção de Percy na trama, assim como em sua sede de vingança. A partir deste ponto, a adaptação dos Briarwood puxa a animação para um lado mais obscuro e, mesmo não deixando de servir momentos engraçados, a trama adota um ar mais sério e misterioso.
A decisão do streaming em separar a série em blocos semanais foi positiva para o público imergir no clima de suspense que o enredo queria transmitir. Em cada sessão final, um novo acontecimento vinha à tona e despertava cada vez mais o interesse para descobrir o que estava transcorrendo. Aos poucos, os segredos dos Briarwood foram revelados para os telespectadores. De modo perturbante, Delilah utiliza-se da necromancia para curar Sylas de uma doença repentina, ambos foram expulsos do comando de seu próprio reino, pela ocorrência dessa pratica ser ilegal no império Dwendalian. Sendo obrigados a encontrar uma nova localização para poder liderar, eles decidem ocupar o castelo de Whitestone, reino na qual a família De Rolo governava.
Após a queda de sua família do lugar no trono e o massacre dos mesmos, Percy consegue escapar dos ataques e, por anos, guarda o rancor e o trauma dentro de si. Esse ódio instaurou um grande desejo de vingança por parte de Percival, onde fixou uma meta de assassinar todos os envolvidos na morte de seus parentes. Os momentos de tela na qual Percy percorre incessantemente pela sentença, são alguns dos pontos mais emocionantes e inquietantes da animação. Essa mistura de sensações contribuiu para que De Rolo fosse o personagem mais marcante e bem trabalhado da primeira campanha de The Legend of Vox Machina.
Em um todo, o plano de separar um material extenso e de longa duração como as partidas de RPG, e as transformar em um conteúdo televisivo, foi desempenhado em um ritmo que não é cansativo e nem rápido demais. O trabalho final proporcionou grandes momentos de ação, drama e humor, de modo que não seja exagerado e sim, na dose correta para cada situação. Com amplas referências de blockbusters de conteúdo geek, a animação não prometeu nada demais do que outras obras no catálogo do Prime Video, entretanto, superou de forma avassaladora as expectativas já esperadas pelos os fãs de Critical Role e abriu portas para novos admiradores da série.