Felipe Nunes
Em A Filha do Palhaço, o título engana e que bom por isso. A história, inicialmente simples sobre mais uma relação paternal problemática, se transforma em uma trama catártica cheia de reviravoltas que te prende do início ao fim e está longe de ser um drama clichê. É com Renato (Demick Lopes) e Joana (Lis Sutter) que vemos uma disfuncional relação entre pai e filha abrir portas para a polissemia da cinematografia. Da maternidade solo ao abandono parental, a obra passeia por temas delicados com uma abordagem fiel ao que se propõe. O mérito é do excelente roteiro assinado por Amanda Pontes, Michelline Helena e Pedro Diogenes.
No filme, acompanhamos Renato e Joana se esforçando para reconstruir um vínculo que nunca existiu. Embora tentem, são estranhos um para o outro e qualquer diálogo soa tão constrangedor quanto conversas de elevador. O parentesco biológico não é capaz de suprir o descaso afetivo e é com essa premissa que todas as subtramas são ligadas. Se, por um lado, entendemos as mágoas de uma adolescente negligenciada, por outro, conhecemos os motivos que fizeram o patriarca jogar tudo para o ar e viver ao lado do grande amor – mesmo que isso signifique não estar na vida da primogênita.
Na pele de uma jovem de 14 anos, Lis Sutter concentra toda a narrativa em si. A protagonista enfrenta os triviais dilemas dessa faixa etária, como a busca pela popularidade escolar e as inseguranças do primeiro amor. Seria o clássico enredo de qualquer comédia romântica teen se ela não tivesse sido abandonada pelo pai quando era uma criança e descobrisse, anos depois, que ele deixou ela e a mãe para viver um romance com outro homem. Vencedor da Mostra de Cinema de Gostoso e também do Prêmio de Público na Mostra de Tiradentes, o longa-metragem se consagra por destrinchar todas essas situações a partir da aproximação da ressentida menina com o pai ausente.
Além disso, Renato transita por várias versões de si próprio nos três atos. Em uma espécie de metalinguagem satírica, o personagem, que é ator na trama, interpreta a drag Silvanelly, um alter ego capaz de extravasar tudo o que ele sente e não tem coragem de dizer, principalmente para a filha. Com Renato, apatia, vergonha e medo imperam, ao passo que, com Silvanelly, energia, extroversão e audácia são priorizados. Na dualidade entre um e outra, uma terceira persona é criada com a fusão dos dois, afinal, eles são um só.
Enquanto mostra a criação do vínculo fraternal entre os protagonistas, o filme aprofunda outras temáticas como aceitação, abandono parental, xenofobia, homofobia e maternidade solo. Cada uma dessas subtramas é exposta de uma forma sutil, porém, isso não significa que os assuntos foram tratados com superficialidade. Em outras palavras: o roteiro balanceia com destreza todos os eixos narrativos que escolheu trabalhar, alcançando o seu auge com as pazes de Renato com a filha e a sua própria sexualidade.
Para encontrar o lugar ao sol junto de sua “alma gêmea”, como o próprio define, o palhaço larga a vida que vive e passa a aproveitar o novo romance pelas belas praias cariocas. Contudo, a paixão de verão tem um final trágico. Renato não perde apenas a proximidade com a filha, como também a chance de uma longeva vida com Diogo, que morre em um acidente de trânsito pouco tempo depois do início da relação homoafetiva. A direção de Pedro Diogenes nestas sequências e em todo o longa é fina, beirando a fragilidade e a inconsistência – parâmetro que se destoa bastante de outras obras do profissional, conhecido por Pajeú e Inferninho.
Sob a responsabilidade de Cozilos Vitor e João Victor Barroso, a trilha sonora é uma personagem à parte. Junto ao elenco, se soma como um dos trunfos da produção cinematográfica. Com versos de ícones da Música Popular Brasileira (MPB) – a exemplo de Luiz Gonzaga, Luiza Nobel, Uirá dos Reis e Getúlio Abelha –, as canções são um elo entre os protagonistas, que passam a se aproximar através de gostos musicais semelhantes.
Na tentativa de tratar os temas com delicadeza, a potência de determinados arcos é prejudicada e fica aquém do que poderia ter sido, caso fosse executada com propostas mais catárticas e enérgicas. A sensação é que falta gana e intensidade em conjuntos que poderiam ter destacado mais a competência do elenco. Além da dupla de protagonistas, o filme conta ainda com as participações de Jupyra Carvalho, Ana Luiza Rios, Valéria Vitoriano e Jesuíta Barbosa, que ganhou destaque na televisão nacional ao protagonizar o remake de Pantanal.
Produzido pela Marevolto Filmes em parceria com a Pique-Bandeira Filmes, A Filha do Palhaço chega aos cinemas como um daqueles longas que vai te chacoalhar e fazer refletir. Não é uma narrativa maniqueísta de um pai vilão que abandonou a filha, tampouco a de uma menina problemática que se afastou do pai. É uma história dramática que reflete a vida de vários brasileiros; são duas pessoas que escolhem se conectar para além do laço biológico que sempre vão carregar. Quando abraçam o futuro que podem criar juntos e esquecem os erros do passado, Renato e Joana finalmente se encontram. Dessa vez, para não se perderem nunca mais.