Longe do humor, A Filha do Palhaço se ancora em dramas familiares

Cena do filme A Filha do Palhaço. os atores Demick Lopes e Lis Sutter, que interpretam, respectivamente, Renato e Joana, estão presentes. Renato está no canto esquerdo, usando luvas de manga longa douradas, um colar com contas coloridas e um sutiã com enchimento. Ele está maquiado como parte da caracterização da drag Silvanelly, que interpreta todas as noites. No lado direito, encontra-se Joana. Com os cabelos amarrados, a jovem de 14 anos segura uma bolsa e sorri para o pai. Ela veste uma blusa de manga curta cinza com a estampa de um cachorro e, por baixo, uma blusa de manga longa com listras rosas e pretas. Pai e filha estão na frente de um carro.
A produção nacional teve sua primeira exibição no Cine Ceará, o Festival Ibero-americano de Cinema (Foto: Embaúba Filmes)

Felipe Nunes

Em A Filha do Palhaço, o título engana e que bom por isso. A história, inicialmente simples sobre mais uma relação paternal problemática, se transforma em uma trama catártica cheia de reviravoltas que te prende do início ao fim e está longe de ser um drama clichê. É com Renato (Demick Lopes) e Joana (Lis Sutter) que vemos uma disfuncional relação entre pai e filha abrir portas para a polissemia da cinematografia. Da maternidade solo ao abandono parental, a obra passeia por temas delicados com uma abordagem fiel ao que se propõe. O mérito é do excelente roteiro assinado por Amanda Pontes, Michelline Helena e Pedro Diogenes.

No filme, acompanhamos Renato e Joana se esforçando para reconstruir um vínculo que nunca existiu. Embora tentem, são estranhos um para o outro e qualquer diálogo soa tão constrangedor quanto conversas de elevador. O parentesco biológico não é capaz de suprir o descaso afetivo e é com essa premissa que todas as subtramas são ligadas. Se, por um lado, entendemos as mágoas de uma adolescente negligenciada, por outro, conhecemos os motivos que fizeram o patriarca jogar tudo para o ar e viver ao lado do grande amor – mesmo que isso signifique não estar na vida da primogênita. 

Cena do filme A Filha do Palhaço. Joana está no ateliê do pai, que conta com diversas luzes coloridas, enfeites e fotos. No centro, a jovem, que está de perfil, olha para um mural de fotos. Ela é branca e tem cabelos ondulados pretos. O fundo da cena está desfocado.
Novata, a atriz que dá vida à protagonista nunca tinha trabalhado com artes cênicas antes do longa (Foto: Embaúba Filmes)

Na pele de uma jovem de 14 anos, Lis Sutter concentra toda a narrativa em si. A protagonista enfrenta os triviais dilemas dessa faixa etária, como a busca pela popularidade escolar e as inseguranças do primeiro amor. Seria o clássico enredo de qualquer comédia romântica teen se ela não tivesse sido abandonada pelo pai quando era uma criança e descobrisse, anos depois, que ele deixou ela e a mãe para viver um romance com outro homem. Vencedor da Mostra de Cinema de Gostoso e também do Prêmio de Público na Mostra de Tiradentes, o longa-metragem se consagra por destrinchar todas essas situações a partir da aproximação da ressentida menina com o pai ausente.

Além disso, Renato transita por várias versões de si próprio nos três atos. Em uma espécie de metalinguagem satírica, o personagem, que é ator na trama, interpreta a drag Silvanelly, um alter ego capaz de extravasar tudo o que ele sente e não tem coragem de dizer, principalmente para a filha. Com Renato, apatia, vergonha e medo imperam, ao passo que, com Silvanelly, energia, extroversão e audácia são priorizados. Na dualidade entre um e outra, uma terceira persona é criada com a fusão dos dois, afinal, eles são um só.

Cena do filme A Filha do Palhaço. Renato se maquia para interpretar a drag Silvanelly. O ator está com um semblante sério e passa lápis na sobrancelha. A região nasolabial e as pálpebras estão com pó branco. Atrás do ator, há um estande com algumas roupas. Ele veste um roupão com estampa florida.
Ainda que foque em dramas familiares, a narrativa também aborda as dificuldades de artistas independentes, músicos e atores (Foto: Embaúba Filmes)

Enquanto mostra a criação do vínculo fraternal entre os protagonistas, o filme aprofunda outras temáticas como aceitação, abandono parental, xenofobia, homofobia e maternidade solo. Cada uma dessas subtramas é exposta de uma forma sutil, porém, isso não significa que os assuntos foram tratados com superficialidade. Em outras palavras: o roteiro balanceia com destreza todos os eixos narrativos que escolheu trabalhar, alcançando o seu auge com as pazes de Renato com a filha e a sua própria sexualidade.

Para encontrar o lugar ao sol junto de sua “alma gêmea”, como o próprio define, o palhaço larga a vida que vive e passa a aproveitar o novo romance pelas belas praias cariocas. Contudo, a paixão de verão tem um final trágico. Renato não perde apenas a proximidade com a filha, como também a chance de uma longeva vida com Diogo, que morre em um acidente de trânsito pouco tempo depois do início da relação homoafetiva. A direção de Pedro Diogenes nestas sequências e em todo o longa é fina, beirando a fragilidade e a inconsistência – parâmetro que se destoa bastante de outras obras do profissional, conhecido por Pajeú e Inferninho.

Cena do filme A Filha do Palhaço. Na parte esquerda, o ator Jesuíta Barbosa está com o rosto maquiado para parecer um palhaço e aparece fumando. Ele veste uma regata branca, calça marrom e meias de cano longo com listras rosas e pretas. Ao lado dele, no centro, está Renato com uma camisa escura e uma calça jeans clara. Renato dá colo para a filha, Joana, apoiar a cabeça. A jovem veste uma blusa cinza de manga curta e, por baixo, uma blusa de manga longa com listras laranjas e pretas. Os três estão na calçada de um bar.
A Fotografia sensível e soturna presente nos momentos de solidão de Renato é escanteada nos arcos de frenesi do personagem (Foto: Embaúba Filmes)

Sob a responsabilidade de Cozilos Vitor e João Victor Barroso, a trilha sonora é uma personagem à parte. Junto ao elenco, se soma como um dos trunfos da produção cinematográfica. Com versos de ícones da Música Popular Brasileira (MPB) – a exemplo de Luiz Gonzaga, Luiza Nobel, Uirá dos Reis e Getúlio Abelha –, as canções são um elo entre os protagonistas, que passam a se aproximar através de gostos musicais semelhantes. 

Na tentativa de tratar os temas com delicadeza, a potência de determinados arcos é prejudicada e fica aquém do que poderia ter sido, caso fosse executada com propostas mais catárticas e enérgicas. A sensação é que falta gana e intensidade em conjuntos que poderiam ter destacado mais a competência do elenco. Além da dupla de protagonistas, o filme conta ainda com as participações de Jupyra Carvalho, Ana Luiza Rios, Valéria Vitoriano e Jesuíta Barbosa, que ganhou destaque na televisão nacional ao protagonizar o remake de Pantanal.

Cena do filme A Filha do Palhaço. No canto esquerdo, está Joana coberta por uma toalha e com os cabelos molhados. No canto direito, está Renato, sem camisa e com os cabelos molhados. Sentados na areia da praia, pai e filha estão de costas para a câmera, observando o horizonte.
“Um filme que aponta para possibilidade de famílias formadas das mais diversas formas possíveis”, define o diretor Pedro Diógenes (Foto: Embaúba Filmes)

Produzido pela Marevolto Filmes em parceria com a Pique-Bandeira Filmes, A Filha do Palhaço chega aos cinemas como um daqueles longas que vai te chacoalhar e fazer refletir. Não é uma narrativa maniqueísta de um pai vilão que abandonou a filha, tampouco a de uma menina problemática que se afastou do pai. É uma história dramática que reflete a vida de vários brasileiros; são duas pessoas que escolhem se conectar para além do laço biológico que sempre vão carregar. Quando abraçam o futuro que podem criar juntos e esquecem os erros do passado, Renato e Joana finalmente se encontram. Dessa vez, para não se perderem nunca mais.

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