Maria Clara Alves
Tão emblemática quanto polêmica, Marighella, cinebiografia dirigida por Wagner Moura, completa cinco anos em Novembro de 2024. Inspirado no livro Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo, de Mário Magalhães, o filme foi o primeiro trabalho do ator como diretor de Cinema e emplacou como uma de suas produções mais complexas, desafiadoras e, sobretudo, emocionantes. A partir do fascínio do cineasta por movimentos populares de resistência, fica claro que o longa-metragem foi pensado a partir da necessidade de recontar a história da Ditadura Militar por um ponto de vista mais vermelho e visceral.
O Carlos Marighella da história nasceu em Salvador e foi o mais velho de oito irmãos. Seu pai, Augusto Marighella, era um imigrante italiano que veio para o Brasil em uma das ondas de incentivo à imigração após a abolição. No século XIX, sua mãe, Maria Rita dos Santos, era filha de escravos e tinha origem sudanesa, da etnia haussá. Desde cedo, o menino se destacava pela habilidade com as palavras na escola. Anos mais tarde, ele teria se radicalizado e passado a militar como deputado federal pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), com o qual rompeu após a renúncia de João Goulart. Depois, juntou-se à Aliança Nacional Libertadora (ANL), pela qual lutou até o ano da sua morte (1969).
Desde a sua idealização, o filme enfrentou grandes dificuldades relacionadas à propagação de conteúdos falsos, ameaças e falta de apoio financeiro. A carreira consolidada de Wagner Moura no ramo da atuação pouco serviu como fator de convencimento para muitas das grandes e tradicionais produtoras cinematográficas do país, que buscavam não se associar com a figura do guerrilheiro – tido como revolucionário para algumas pessoas e terrorista para uma parcela muito maior dessas. A obra se desenrolou, de fato, sob o selo da produtora independente O2 Filmes e foi exibida, pela primeira vez, em Fevereiro de 2019, no 69° Festival Internacional de Cinema de Berlim, embora tenha estreado oficialmente nos cinemas brasileiros apenas em 2021.
Em 2019, o longa tinha sido cancelado pela Agência Nacional de Cinema (Ancine) devido à produtora não ter entregue a documentação sobre os investimentos que custearam o filme dentro do prazo. Ao mesmo tempo, a agência era ameaçada de extinção caso o seu catálogo não fosse revisto. Isso foi mais uma adição à lista de dificuldades que quase custaram a estreia de Marighella.
Apesar da sua minutagem não comercial, o longa-metragem – distribuído em conjunto pela Paris Filmes e Downtown Filmes – ganhou as salas de cinema por todo o Brasil e se consagrou como a maior bilheteria nacional de 2021. O roteiro, escrito por Wagner Moura em conjunto com o produtor Felipe Braga, trabalha com dois extremos do baiano: a afetuosidade com o filho e o desgosto, visível no olhar, com a figura dos militares. A expressividade do protagonista é, inclusive, um dos pontos de destaque da trama. Os olhos profundos e penetrantes de Seu Jorge se destacam nas cenas em que o ator está presente e conferem camadas de sensibilidade à personagem, cativando o público e instigando a afinidade dele com Marighella.
A sucessão rápida e violenta das cenas fomenta sensações de ansiedade e tensão no espectador, com o objetivo de transmitir a adrenalina, o amor pelo próprio país e o medo das personagens. As câmeras são rápidas para acompanhar os momentos de embate e fuga dos combatentes, mas também conseguem captar fielmente a essência de cenas mais paradas de diálogo, com sombreados sempre presentes e que se tornam responsáveis pela carga de seriedade. A narrativa progride com a execução de membros da ALN: primeiro Maria (Ana Paula Bouzas), depois Guilherme (Guilherme Ferraz), Rafael (Rafael Lozano), Humberto (Humberto Carrão), Jorge (Jorge Paz) e Jorge Salles (Herson Capri).
Era questão de tempo para que as autoridades chegassem até o protagonista e a ambientação, marcada pelo maior contraste das cores e iluminação escurecida, também incita essa agonia. O trabalho com as câmeras – com direção de Adrian Teijido – e o uso dos diferentes tipos de luz foram essenciais para acompanhar toda a dinamicidade da luta armada no ambiente urbano. Além disso, o trabalho de produção, coordenado por Andrea Barata Ribeiro e Bel Berlinck, contou com muitas cenas gravadas no período da noite, quando a penumbra intensifica as expressões das personagens e as sensações incitadas no público.
A cinebiografia trabalha com a ideia de contrastes que vai sendo retomada sucessivamente ao decorrer do filme, a exemplo da representação do baiano, que levava a frase ‘olho por olho’ como um mantra para tomar decisões, até a memória dos momentos que a personagem compartilha com Carlinhos, seu único filho. A conexão entre pai e filho – mesmo com a distância e a perseguição política – é frequentemente retomada na trama, sendo fundamental para mostrar o lado humano, muitas vezes, negado de Carlos Marighella, que se contrapõe à sua representação depreciativa no imaginário coletivo brasileiro.
O fardo da morte, em Marighella, é tratado da forma mais fria possível. O lado amargo da luta armada é retratado a todo momento ao mostrar a discrepância entre guerrilheiros e militares, esses que tinham todo o aparato bélico e midiático a seu favor. A ambientação sombria das cenas evidencia a solidão e desumanização dos combatentes que, enquanto questionadores, não eram vistos e nem tratados como brasileiros. A angústia e melancolia tomam conta do enredo e de quem o assiste como uma neblina, dificultando a digestão de cenas mais leves, que se tornam cada vez mais escassas frente às diversas cenas gráficas de violência.
O lado humano de Marighella é explicitado, principalmente, nas trocas que ele tem com Carlinhos, levando-o no peito e no pensamento. Ainda que vivesse como fugitivo, o guerrilheiro fez do amor de seu filho o seu norte, direção que seguiu até o final de sua vida. A narrativa não linear faz um trabalho excepcional ao retratar os acontecimentos com alguns pensamentos e comentários do protagonista, possibilitando a compreensão aprofundada das múltiplas faces de uma das figuras mais polêmicas do Brasil até hoje.
Marighella passa obrigatoriamente pelo campo de debate político e dialoga com aqueles que têm interesse em conhecer os valores de uma das pessoas mais controversas do país, seja para questioná-la ou admirá-la. Apesar do salto temporal do enredo para os dias atuais, muitas questões permanecem as mesmas, especialmente a distorção dos fatos sobre o revolucionário. A obra conseguiu entregar uma cinebiografia condizente com a história conturbada e mal interpretada de Carlos, permanecendo como uma crítica ácida à sociedade brasileira.