Gabriel Oliveira F. Arruda
Medir com precisão o impacto real que a mídia tem sobre nós pode ser uma tarefa complicada. Mesmo que a popularidade de um determinado filme ou série possa ser tão grande e absoluta que pareça impossível escapar de seu olhar, é complicado dizer como o tempo vai julgá-la. Há cerca de um ano atrás, acompanhávamos fervorosamente o final de Game of Thrones, inegavelmente uma das séries mais populares de todos os tempos, enquanto hoje, não fossem pelas controvérsias de seus criadores e os derivados prometidos pela HBO, talvez sequer falaríamos mais do programa.
No entanto, algumas obras sobrevivem tão ferrenhamente ao teste do tempo – de fato, melhorando com ele – que é impossível não gravá-las em nossas mentes e reverenciá-las além da mera nostalgia. Tal é o caso de Avatar: A Lenda de Aang, que estreava há pouco mais de 15 anos na Nickelodeon, em 21 de fevereiro de 2005.
É difícil falar com alguém que acompanhou Avatar durante os anos seguintes e não sentir o profundo impacto que a série animada causou nele(a), seja por suas temáticas bem articuladas, suas narrativas extremamente emocionantes ou por seu estilo visual diferente da maioria das animações ocidentais da época.
Caso você ainda não esteja familiarizado com ela, Avatar: A Lenda de Aang é uma série animada de aventura e fantasia criada por Bryan Konietzko e Michael Dante DiMartino que toma como inspiração diversos aspectos de culturas orientais e os organiza para criar uma mitologia ao mesmo tempo compreensível e desafiadora. Ao longo de três temporadas, ou “livros”, Avatar nos apresentou a um mundo vivo, que respirava juntos de seus personagens dinâmicos e carismáticos.
“Há muito tempo, as nações viviam em paz e harmonia”
Na ficção de Avatar, existem quatro grupos capazes de dominar os diferentes elementos da natureza: a Tribo da Água, o Reino da Terra, a Nação do Fogo e os Nômades do Ar. Entre eles, apenas o Avatar é capaz de dominar todos os elementos e de manter o equilíbrio entre as quatro nações. Porém, há cerca de 100 anos ele desapareceu sem deixar qualquer rastro e a Nação do Fogo se aproveitou de sua ausência para atacar as outras.
No início da série, dois irmãos da Tribo da Água, Katara e Sokka, encontram o Avatar desaparecido preso em um iceberg: Aang, um menino dominador de ar, junto com seu gigantesco bisão voador, Appa. E assim os três embarcam em uma jornada épica para ensinar Aang a dominar os outros três elementos para poder desafiar o Senhor do Fogo e acabar com a guerra.
Muitos argumentam que a popularidade de Avatar pode ser rastreada até a premissa da história, que lida com temas complexos como o custo da guerra e as atrocidades que os seres humanos são capazes de cometer uns contra os outros. Logo nos primeiros episódios, vemos Aang descobrindo que não apenas todos aqueles que ele conhecia estão mortos, mas que todos os Nômades do Ar foram sistematicamente eliminados, deixando-o como o titular “último dominador de ar”.
Mas é possível defender exatamente o contrário: que A Lenda de Aang nos cativou justamente porque era direcionado a um público infantil, mas que procurava transmitir uma mensagem ao invés de apenas distrair. Durante a viagem, vemos as personagens passarem por traumas e tribulações que não só os desafiam, mas que também os vão mudando, episódio a episódio, ao longo de três temporadas habilmente estruturadas e desenvolvidas. E em nenhuma personagem vemos isso melhor do que no príncipe Zuko.
“E aí tudo isso mudou quando a Nação do Fogo atacou.”
Inicialmente o antagonista principal da série, Zuko tem um objetivo claro desde o início: capturar o Avatar e, assim, reconquistar sua honra (essa parte é bem importante, ele repete várias vezes) para poder retornar para a sua casa e obter o amor de seu pai, o Senhor do Fogo Ozai. Ao lado de seu sorridente tio Iroh, Zuko parece se importar com pouca coisa além disso, dedicando todo o seu tempo à procura do misterioso Avatar, que parece ter subitamente retornado dos mortos.
É no décimo-segundo episódio da primeira temporada, “A Tempestade”, que vemos o porquê dessa obsessão. Ao mesmo tempo que ouvimos Aang contar a história de como ficou preso no iceberg, fugindo da responsabilidade de ser o Avatar, ouvimos sobre como Zuko foi punido por defender soldados da Nação do Fogo, sendo obrigado a lutar contra o seu próprio pai e como ele foi posteriormente desfigurado e exilado por conta de sua recusa em lutar. A partir daí, somos obrigados a julgar as ações de Zuko não como as de um vilão, mas como a de um filho perdido tentando resgatar o afeto de seu pai.
É uma história trágica que se desenrola ao longo da série, revelando o verdadeiro caráter de Zuko em momentos pequenos, como no episódio “Zuko Sozinho”, da segunda temporada, em que ele é forçado a defender uma aldeia de fazendeiros do Reino da Terra sob o disfarce de um espadachim solitário, numa clara inspiração do gênero western (que por sua vez se inspira nos filmes de samurai japoneses). Em momentos como esse, somos capazes de ver a sombra de quem Zuko era, tornando momentos em que ele entra em conflito com o time Avatar ainda mais dramáticos, porque sabemos que tanto Aang quanto Zuko estão encarando a mesma tempestade, apenas em circunstâncias diferentes.
O arco do príncipe exilado também acompanha uma crescente dramatização da guerra entre as nações. No mundo de Avatar, nenhum conflito é pintado em preto e branco. Conforme nossos heróis viajam, eles observam situações de injustiça em todas as nações, fazendo com que Aang e até a própria audiência entendam que restaurar o equilíbrio do mundo é uma tarefa muito mais complicada do que parece.
Durante a terceira temporada, que se passa em grande parte no território controlado pela Nação do Fogo, eles aprendem o que significa fazer parte do regime autoritário e belicoso de Ozai. Esse é o território onde a máquina da guerra trabalha mais arduamente, exaurindo os recursos naturais e ensinando aos cidadãos que a guerra é um meio de partilhar a riqueza deles com o resto do mundo. As únicas pessoas favorecidas pela guerra são aquelas que nunca tem que lutar nela – uma mensagem corajosa para se dar em uma animação transmitida nos Estados Unidos, um país que partilha de várias das mesmas pretensões imperialistas que os vilões da história.
É intensamente satisfatório ver Zuko tentando ser melhor, mesmo que ele falhe diversas vezes, porque nos lembra que tentar ser uma boa pessoa nem sempre é fácil ou simples; muitas vezes os seus desejos vão entrar no caminho e vão te fazer tomar decisões das quais você talvez se arrependa. Nunca é fácil dar um passo para trás e reconsiderar o que você realmente quer, mas é um pouco mais fácil quando se tem pessoas que acreditem em você e no que você é capaz.
“Existe um pouco do Zuko em todos nós. Todos nós queremos reconquistar honra, todos fomos mal compreendidos e queremos provar que os outros estão errados – especialmente aqueles com os quais mais nos importamos.” – Dante Basco, dublador original do Zuko, em entrevista à Vice
O tio de Zuko representa uma parte igualmente importante desse processo. Um antigo general da Nação do Fogo, Iroh vai lentamente se revelando alguém mais sábio do que seu semblante leve e descomplicado sugere. Em um momento marcante da segunda temporada, o falecido dublador do personagem, Mako, é homenageado em um momento que acrescenta um teor melancólico em todas as atitudes desde então, e recontextualiza sua relação com seu sobrinho em algo ainda mais profundo.
Iroh é definitivamente uma das figuras paternas mais positivas da história da televisão e seu papel na história de redenção de Zuko é essencial. É possível preencher um livro inteiro apenas com ensinamentos que ele dá ao sobrinho e a outras personagens que cruzam o seu caminho no decorrer da jornada dos dois.
“Não, Zuko! Nunca se deixe levar pelo desespero. Se você se permitir ir por essa estrada, vai se render aos seus instintos mais baixos. Nos tempos mais sombrios, temos que dar esperança a nós mesmos. Esse é o significado da força interior” – Tio Iroh
“Só o Avatar domina os quatro elementos e pode impedi-los”
O extenso mundo de A Lenda de Aang se revela através de seus personagens, não só por pura exposição, mas por diálogos extremamente pessoais e bem desenvolvidos. Quaisquer aspectos do mundo que nossos personagens encontram são geralmente entregues através de outros personagens, de modo que os temas e conflitos da história são sempre dinâmicos e, com frequência, emocionantes. O trabalho dos roteiristas em adequadamente caracterizar as personagens dessa maneira e ao mesmo tempo dar espaço para que eles cresçam e ainda personalidades muito marcantes não é nada menos do que louvável.
É incrivelmente marcante ver Aang crescer ao longo da série, muitas vezes de maneiras inesperadas. O garoto de 12 anos que não perdia uma oportunidade para brincar com os amigos e esquecer, mesmo que por alguns momentos, a responsabilidade pelo equilíbrio do mundo dá lugar a um herói mais maduro e preparado, mas que nunca perde sua sensibilidade e sua gentileza, características que o separam radicalmente de outros heróis da ficção americana.
Também vemos Katara e Sokka crescendo e sendo obrigados a assumir lugares de liderança na luta contra a Nação do Fogo, com Katara sendo o eixo emocional sobre o qual a história gira, fornecendo ânimo e apoio a todos os outros personagens, e Sokka se tornando um estrategista sagaz e pouco convencional. Katara, especialmente, se torna uma das personagens femininas mais dinâmicas já retratadas na televisão, com emoções e sentimentos que vão muito além do que esperávamos de personagens animados na época.
Não há como esquecer de Toph Beifong, introduzida na segunda temporada e que se torna a professora de dominação de terra de Aang (curiosamente, uma das únicas personagens do mundo de Avatar a ter um sobrenome). Toph decide seguir Aang não apenas para ajudá-lo a salvar o mundo, mas também como uma maneira de escapar dos braços superprotetores de seus pais, que não conseguem aceitar o seu gênio em dominação por ela ser cega. Apesar de fazer piadas ocasionais com sua condição, A Lenda de Aang acerta ao tratar esse aspecto da personagem com sensibilidade e tato, dando tanto leveza quanto cadência às discussões feitas na série.
Em um exemplo de como o desenvolvimento do mundo se atrela diretamente aos personagens e suas jornadas, vemos Toph desenvolvendo uma nova técnica de dominação que lhe permite manipular metal por meio dos elementos presentes no solo, enquanto Aang aprende sobre chakras e como nada no mundo está realmente isolado: tanto as nações quanto os elementos são conectados, e somos nós que construímos as fronteiras que os separam. É um sentimento repetido ao longo da série por personagens como Iroh, que atribuem sabedoria à noção de que o conhecimento deve vir de várias partes e que, isoladamente, ele se torna velho e obsoleto.
Outra personagem que surge durante a segunda temporada é Azula, irmã de Zuko e herdeira de Ozai, uma dominadora de fogo extremamente poderosa e ardilosa, que permanece um passo à frente de seu irmão e de Aang durante quase todos os episódios que aparece. Sua habilidade nata em manipular e iludir os heróis a coroam como uma boa vilã, mas é especialmente sua dinâmica com Zuko que realmente a fazem brilhar. No irmão, ela vê apenas a fraqueza e a falta de convicção que o levaram a ser banido. Nela, Zuko vê o amor que foi incapaz de receber do próprio pai. É uma tragédia familiar shakespeariana de proporções épicas.
O mundo de Avatar é construído através de diversas culturas e ideias: cada nação é moldada analogamente a uma cultura que existe de verdade. A Nação do Fogo possui elementos e estéticas que remetem ao japão feudal, enquanto o Reino da Terra possui um território grande e uma arquitetura reminiscente de estruturas chinesas. As Tribos da Água (uma localizada no Polo Norte e outra no Polo Sul) usam de inspiração os povos inuítes e os Nômades do Ar possuem templos espalhados por todas as nações e que fazem analogia à cultura dos monges budistas.
Não apenas isso, mas a maneira com que elas dominam os diferentes elementos é baseada em diferentes artes marciais que seguem a lógica de seu próprio elemento: a dominação de fogo é agressiva e seus dominadores usam os braços e pernas de maneira ofensiva durante o combate, enquanto a dominação de água usa o movimento do corpo como um chicote, prezando pela fluidez e equilíbrio dos movimentos. A dominação de terra, que geralmente envolve chutes e o movimento das pernas, foi adaptada para Toph, que usa a sola dos pés para localizar os oponentes e que deve então manter os pés em contato com o chão o tanto quanto possível.
“Eu acredito que um dia Aang vai salvar o mundo”
Uma das razões pelas quais Avatar permanece tão presente no imaginário popular – presente o suficiente para inspirar uma sequência em 2012 e um novo remake em live-action produzido pela Netflix, além de diversas HQs e livros que exploram ainda mais seu universo – , é o seu encerramento. Poucas séries conseguiram se encerrar em uma nota tão positiva quanto A Lenda de Aang. Em um espaço de apenas quatro episódios, estruturados como um filme de 1h20, Avatar traz um encerramento para diversos arcos que vinham sendo estabelecidos ao longo das temporadas, de forma poderosa e impactante.
Após Aang subitamente desaparecer, nossos heróis se reúnem com todos os aliados disponíveis e fazem um plano às pressas para tentar atrasar os planos do Senhor do Fogo: enquanto Sokka e Toph tentam parar sua frota de dirigíveis mortais, Zuko e Katara partem para desafiar Azula pelo trono da Nação do Fogo. Ambas tramas exibem o melhor de seus personagens durante seu último grande esforço.
No conflito entre Zuko, o príncipe redimido, e Azula, que fica cada vez mais instável nos últimos episódios após ter sido traída por todos em quem confiava, vemos o vilão máximo da série: gerações de famílias sendo guiadas por ódio e ambição, e não por amor ou afeto. Na loucura de Azula, a expressão máxima da falta desse afeto, e na redenção de Zuko, a presença curadora que o amor pode ter. Um amor que não veio de seu pai, mas de seu tio, a única pessoa que sempre acreditou nele. Não é nada mais justo esse duelo terminar com Zuko salvando alguém ao invés de destruindo: salvando Katara ele se redime completamente, terminando com o ciclo de violência que manteve sua família presa por tanto tempo ao ódio e à guerra.
Em um momento absolutamente crucial da trama, em que todos os planos falharam e nossos protagonistas estão correndo contra o tempo para impedir uma catástrofe, a série ainda abre espaço para aprofundar um de seus principais conflitos: como verdadeiramente trazer o equilíbrio para o mundo? Apenas quando vemos Aang tendo que decidir se vai ou não tirar a vida do Senhor do Fogo é que vemos o tamanho dessa escolha. Seria fazer algo que fosse contra todos os ensinamentos dos Nômades do Ar, para quem toda vida é sagrada. Mesmo que fosse para o bem do mundo, como é o dever do Avatar, seria algo contra a própria natureza de Aang. Até mesmo suas vidas passadas pedem que ele coloque o mundo em primeiro lugar antes de seu próprio equilíbrio.
Após uma luta brutal na qual o poder dos dois é potencializado pela passagem do Cometa de Sozin, Aang finalmente se conecta ao Estado Avatar e é capaz de utilizar a sabedoria de todos os Avatares que vieram antes dele e combiná-las em uma forma de combate devastadora. Após passar o embate inteiro na ofensiva, é quase eufórico ver Ozai tendo que recuar desesperadamente, tamanha é a magnitude da presença de Aang.
E nesse, que talvez seja o momento definitivo de toda a série, Avatar nos entrega sua conclusão definitiva: o equilíbrio do mundo tem que começar com o equilíbrio em si mesmo. Justamente ao poupar Ozai, Aang se torna capaz de adquirir o poder para derrotá-lo. A série recompensa Aang não por se sacrificar, mas por se ater aos seus ideais, mesmo quando parece não haver escolha. A acreditar nele mesmo, mesmo quando todos parecem duvidar. E esse é um encerramento extremamente poderoso para a história de um garoto que acordou em um iceberg e teve que descobrir que todo o seu povo e sua cultura foram dizimados.
Por fim, Avatar: A Lenda de Aang nos entregou aquilo que muito poucas séries conseguiram fazer até hoje: um encerramento que acaba não apenas por cima, mas atinge novas alturas, que fecha os ciclos de suas personagens em arcos catárticos, tensos e emocionantes com um dos finais mais finamente orquestrados da história da televisão.
É extremamente ingênuo achar que Avatar não é uma série para crianças porque ela fala de tópicos “adultos”. É uma série voltada para crianças, mas que pede mais delas do que a maioria. Seria completamente possível vê-la apenas pelas lutas acrobáticas e chamativas e pelo tom épico, não fosse pelas vezes que a série pede diretamente que o público considere e absorva a mensagem que passa. É essencial a produção de mais séries como Avatar, que falem com um público infantil de uma maneira madura e que os respeite como seres humanos, que fale com eles através de humor, tristeza, paixão e todas as outras emoções que as crianças são sim capazes de ter e identificar.
“Se você simplificar demais esse tipo de coisa, pode funcionar para crianças de 6 ou 7 anos, mas até as de 11 vão rejeitar aquilo que não reflete o mundo em que elas vivem. Você consegue criar uma narrativa incrivelmente empática e que respeite a inteligência da audiência? Fazendo isso, você constrói uma história com um impacto incrível para alguém jovem e que permanece com essa pessoa conforme ela envelhece. Porque o que nós escrevemos ainda é verdade. Nós não transformamos em uma mentira para ser mais palatável” – Aaron Ehasz, roteirista-chefe da animação, em entrevista à Vice
Todas as temporadas de Avatar: A Lenda de Aang estão disponíveis atualmente na Netflix.
Obrigada.