Gabriel Rodrigues de Mello
É inimaginável pensar no atual cenário de seriados de televisão sem considerar a influência que sobre ele teve Twin Peaks. Lançada em 1990, a série assinada por David Lynch (Eraserhead, Veludo Azul) e Mark Frost (Hill Street Blues) enfeitiçou milhares de pessoas ao redor do mundo com a sua originalidade, mescla de gêneros e muito café.
Situada na pequena Twin Peaks, a narrativa começa com a descoberta de um cadáver enrolado em plástico na costa gélida do rio da cidade. Para a surpresa do xerife Harry Truman (Michael Ontkean) e do médico legista Hayward (Warren Frost), o corpo pertencia a Laura Palmer (Sheryl Lee): uma jovem de 18 anos, popular, rainha do baile, bela, amigável e de aparente perfeição. O peculiar agente do FBI Dale Cooper (Kyle MacLachlan) então chega à cidade, maravilhado com as árvores, a comida e a idiossincrática população.
A imagem imaculada que os habitantes do município tinham de Laura Palmer se esvaía ao passo em que seus segredos iam sendo descobertos. O mesmo ocorreu com outros personagens secundários e, assim, a cidade inteira, aparentemente simpática, se tornou um emaranhado de mistérios aos olhos do público.
Era possível notar, já pelo piloto, que a série adotava características novelescas, ligadas à temática do romance, melodrama e mistério, ou à estrutura, com subtramas interconectadas e cliffhangers (recurso de roteiro que interrompe a trama em um momento climático, instigando o telespectador a assistir o próximo episódio).
É injusto falar de Twin Peaks sem reconhecer a importância de sua trilha sonora. A música composta por Angelo Badalamenti, colaborador de longa data de Lynch, captura a essência da série: ora instrumental variando entre jazz, dream pop e blues; ora acompanhada pela doce e melancólica voz de Julee Cruise. O jazz engrandece a sensualidade cinquentista dos personagens e o blues revela o lado suspeito de cada morador da cidade. Grande parte dessa precisão emocional se dá pela química entre Badalamenti e Lynch (como bem mostra o vídeo abaixo).
Na época de seu lançamento, era praticamente inexistente um programa que realmente se rendia ao seu lado artístico em meio a uma mídia tão comercial que era – e ainda é – a televisão. Sem desmerecer a escrita de Mark Frost, Lynch transportou a ideia de auteurism (teoria de cinema que denota as características marcantes de uma obra a um só artista) para a televisão. Isso é, pela primeira vez, uma série de TV pôde ser denominada como autoral, no caso: “lynchiana”.
Hoje em dia, vários artistas têm seus estilos reconhecidos através de suas obras televisivas. Por exemplo, Damon Lindelof (Lost, The Leftovers) tem o costume de deixar várias questões de suas obras abertas ao público. Outro caso conhecido é o de Cary Fukunaga, que através de sua direção sufocante, compôs a atmosfera pantanosa da primeira temporada de True Detective.
A influência de Twin Peaks foi tão imediata que Arquivo X, três anos depois, já demonstrava o culto à mitologia de cidade pequena, além da natureza similar configurada nas primeiras temporadas – e é claro, o divertido David Duchovny. Ademais, David Chase, criador de Família Soprano, afirma sua admiração pela atmosfera misteriosa que se dava, não pela investigação policial, mas pelo “clima, as árvores, as rosquinhas”. Chase, cerca de dez anos depois, usaria o sonho como ferramenta narrativa na série que inauguraria a atual era de ouro da televisão.
Outra herança que marcou a série é o seu caráter intrincado e interpretativo. David Lynch, familiar desde Eraserhead (1977) com o surrealismo, espera de cada telespectador uma investigação pessoal para com as questões propostas pela obra. Desse modo, o formato episódico foi usado como uma oportunidade de entregar indagações ao público semanalmente, designando a esse ângulo do surrealismo, uma natureza sistemática. A réplica do público foi uma teorização em massa: pessoas do mundo inteiro discutiam entre si quem matara Laura Palmer, qual o significado do sonho de Cooper, porque tantas tortas de cereja, etc.
Lost, uma década depois, usufruiu do mesmo tipo de efeito. No entanto, já na era da internet, obteve uma resposta muito mais direta por meio dos fóruns online. Esse fator, contudo, exige uma desenvoltura por parte dos criadores da série na criação de expectativa, habilidade que os roteiristas de Lost não souberam utilizar. Nesse caso, sua queda de audiência esteve ligada diretamente à falta de soluções para vários enigmas; no caso de Twin Peaks essa perda foi devida, justamente, com a resposta à questão fundamental.
A febre que dominou o mundo, chegando até à rainha Elizabeth II, chegou ao fim quando, em meio à segunda temporada, foi revelada a identidade do assassino de Laura Palmer. Embora o episódio da revelação em si tenha sido um dos mais aterrorizantes e intensos de toda a obra, o resto da temporada se perdeu entre uma cadeia de subtramas desinteressantes e um novo eixo central que, mesmo ligado ao mistério de Palmer, nem de perto foi tão cativante quanto.
Foi nesse momento que a pressão da ABC venceu o esforço artístico de Lynch e Frost. A dupla entregou o elemento essencial que atraía os telespectadores e os desorientavam entre as escuras, mas mágicas, ruas de Twin Peaks. “Quem matou Laura Palmer? ’ era uma questão que nós nunca realmente gostaríamos de responder”, Lynch disse em uma entrevista recente. “Aquele era o ganso que colocou estes ovos dourados, e era como se então tivéssemos sido cobrados para cortar sua cabeça fora”.
Depois de quinze episódios tomados pela extravagância novelesca e eventos banais, David Lynch retornou ao seu posto de diretor e entregou um season finale que, até certo ponto, compensou as frivolidades anteriores. Um episódio que consolidou a estética onírica e se despediu bruscamente dos personagens. A bizarrice simpática – tão presente na primeira temporada – se inseriu no final como um canto do cisne; logo, é válido pensar na cruel sequência de cliffhangers que encerrou a série como um ato subversivo contra as exigências comerciais: a última risada foi da arte verdadeira.
Twin Peaks fez com que a televisão ganhasse respeito no meio artístico através de seus personagens únicos, de sua trilha sonora, de suas perguntas sem respostas, do senso de humor escrachado ao terror desconcertante. Atualmente, mais de 25 anos depois, séries como Breaking Bad, The Leftovers, Boardwalk Empire, Louie, The Americans, entre muitas outras, elevaram o nível de exigência de qualidade na TV. Mas a questão agora se volta para a pequena cidade, e seus novos 18 episódios assinados pela mesma dupla dinâmica original – será que ela aprendeu com seu próprio legado ou se sustenta somente pela nostalgia?