Quando deixou que seus vencedores discursassem, a premiação resgatou a essência do que deveria representar
Vitor Evangelista
O Oscar 2022 foi marcado por controvérsias muito antes dos famosos pisarem no tapete vermelho. Com a decisão de realizar um pré-show para a entrega de oito prêmios, a fim de poupar tempo e dinamizar a transmissão, os produtores já revelaram que não sabiam o que fazer com o produto em mãos. Dito e feito, os protestos em favor do movimento #PresentAll23 não deram em nada e, uma hora antes do início oficial, os curtas e Duna foram prestigiados. Mas não adianta, não tem imagem mais marcante da 94ª edição do Oscar que não o tapa de Will Smith em Chris Rock. Então, comecemos com ele.
O momento aconteceu perto do terço final da cerimônia, quando Rock apareceu para anunciar o vencedor da categoria de Melhor Documentário. O comediante, que já foi host do Oscar no ano do #OscarsSoWhite, começou falando sobre os casais da noite. Depois de angariar algumas risadas com uma tirada nada original a respeito de Javier Bardem e Penélope Cruz, ele cometeu o pior erro da noite e se direcionou para Will e Jada Smith, sentados logo à frente do palco.
“Jada, eu amo você. G.I. Jane 2, mal posso esperar para ver“, começou Rock, mas não houve tempo de retratação. Smith, favorito a vencer a categoria de Melhor Ator por King Richard, se levantou e estapeou Rock, que ficou sem reação, tentou responder com humor mas logo foi silenciado pelos gritos do ator: “Tire o nome da minha esposa da porra da sua boca”. O momento foi confuso até para o público presente, mas talvez o maior indicativo da veracidade do ato tenha sido os palavrões proferidos por Will, alguém confortável com os programas ao vivo e ciente da proibição desse tipo de linguajar na ocasião.
A questão é que Jada Pinkett Smith sofre de alopecia, uma doença autoimune que causa queda de cabelos. Alguns anos atrás, ela decidiu raspar a cabeça e vir a público com o diagnóstico e a decisão, em um dos momentos mais corajosos e difíceis da sua vida na mídia. A piada, extremamente deslocada e desrespeitosa de Rock, dizia respeito ao filme G.I. Jane, lançado em 1997 e traduzido para o Brasil como Até o Limite da Honra, onde a personagem principal, vivida por Demi Moore, tem a cabeça raspada na intenção de parecer “mais masculina”.
Mas é bom lembrar que essa não é a primeira vez que Chris Rock usa Jada Pinkett Smith como saco de pancadas no palco do Oscar. Em 2016, quando apresentou a cerimônia boicotada pelo casal Smith pela ausência de indicados negros, Rock disse: “Jada boicotar o Oscar é como eu boicotar a calcinha de Rihanna. Eu não fui convidado”.
A plateia assistiu sem entender se tudo não passava de um número ensaiado. Pouco tempo depois, Uma Thurman, Samuel L. Jackson e John Travolta chegaram para anunciar o vencedor de Melhor Ator, em uma das várias pequenas celebrações de aniversário que o Oscar promoveu em 2022. Sem surpresas, depois de vencer o SAG e o BAFTA, Will Smith adicionou um careca dourado ao seu longo currículo nas Artes. Já com os olhos marejados, ele foi sincero e fez uma retratação justa, pedindo desculpas à Academia e aos presentes. Ainda reconheceu os paralelos da sua ação (a de um marido protetor) com a do personagem que lhe rendeu o prêmio (um pai protetor) e mais uma vez se desculpou, revelando palavras de apoio que o companheiro de categoria Denzel Washington disse a ele, e defendendo a ação de proteção às pessoas vulneráveis em um ambiente que tende a ser abusivo.
É uma pena, sem dúvidas, que a premiação fique marcada para sempre como “a edição do tapa”, ainda mais com o número de discursos emocionantes, vitórias históricas e celebrações atemporais. Em uma cerimônia extremamente previsível, tudo começou com Ariana DeBose subindo ao palco para receber o prêmio pela mesma personagem que condecorou Rita Moreno 60 anos atrás. Notável apontar que, durante todo esse intervalo de tempo, apenas 3 atrizes latinas venceram essa categoria, e duas delas na pele de Anita em West Side Story. Emocionando com falas sobre sua identidade como mulher afrolatina e queer, DeBose abriu portas para o que seria um Oscar indeciso de seu tom e humor.
O trio de apresentadoras formado por Amy Schumer, Wanda Sykes e Regina Hall demorou para encontrar o ritmo em conjunto, mas as três provaram ser mais funcionais nas sequências individuais. Logo na entrada, o inconveniente DJ Khaled interrompeu tudo para apresentar propriamente as comediantes, provando que a ABC parece ter aceitado dinheiro à beça para autorizar a inserção de alguns dos convidados, que esse ano apareceram na vinheta de abertura, como numa série de TV.
Ácida como de costume, Schumer zombou da possível aparição do Globo de Ouro no In Memoriam, se vestiu de Homem-Aranha para as gargalhadas de Andrew Garfield e Zendaya, entregou uma queimada fumegante em O Último Duelo e, quando tudo parecia estar indo bem demais, ela chegou e retirou Kirsten Dunst de seu lugar, chamando-a de figurante. O visível desconforto ficou estampado no semblante de Jesse Plemons, marido de Dunst, que mal reagiu ao “humor” da comediante.
Wanda Sykes foi mais inofensiva, e fez valer o cargo de apresentadora quando protagonizou um vídeo no Museu da Academia. O humor de confusão caiu como uma luva nas comparações totalmente tortas que ela fez dos objetos em exposição, com destaque para a cabeça de orc de O Senhor dos Anéis que foi, corretamente, definida como Harvey Weinstein. Regina Hall não fez muito para ser notada, além de uma sequência onde chamou 4 colírios para o palco e fez insinuações sexuais com fundos científicos, além de apalpar sem pudor Josh Brolin e Jason Momoa.
Enquanto alguns nomes foram selecionados com afinco (a trinca de princesas da Disney entregando o título de Melhor Animação para Encanto), outros morreram na praia. Três atletas para apresentar a homenagem para James Bond? Sério? Judi Dench e Javier Bardem estavam na plateia, pessoal! Não era tão difícil elaborar algo melhor. Melhorando os rumos, o elenco de Juno aparece para entregar Roteiro Original (categoria que Diablo Cody venceu pelo filme 14 anos atrás), mas na hora de Roteiro Adaptado, quem subiu para apresentar foi o cantor Shawn Mendes.
À respeito das categorias apresentadas no pré-show, a equipe do Oscar realizou uma inserção dos vídeos editados sem qualquer leveza. O corte rápido para a plateia em palmas poderia passar despercebido, mas ainda ficou a sensação de estranheza. Em comparação com a edição passada, a maior mudança e melhora, além de manter Melhor Filme como categoria final, foi a volta dos clipes no momento de apresentar os nomeados. Além disso, a cerimônia contou com vídeos dos 10 nomeados na disputa principal, e encontrou espaço para uma pequena sequência do grupo sul-coreano BTS falando sobre sua paixão pelos filmes da Disney.
E falando na Disney, a rede ABC (propriedade da empresa) fez questão de ter seus prêmios entregues ao vivo. Ariana DeBose começou a noite em triunfo, seguida pela vitória de Encanto (impossível de ignorar o grupo de produtores brancos agradecendo pelo reconhecimento de um filme que fala da Colômbia e de representatividade) e da celebração do trabalho de Jenny Beavan, figurinista de Cruella (que se vestiu com homenagens e referências à personagem e agradeceu a equipe de maquiagem e cabelo, vitais para a construção do filme), que agora soma 3 estatuetas na carreira. Ela recebeu o prêmio das mãos de Ruth E. Carter, primeira mulher negra a vencer o prêmio em 2019.
Bem da Warner, Duna levou 6 Oscars, 4 deles entregues no pré-show. Entre as vitórias, todas já apontadas por sindicatos precursores, estão Som, Efeitos Visuais, Design de Produção e Montagem. Em Melhor Trilha Sonora Original, Hans Zimmer ganhou, mas não estava presente para receber a honraria. O músico alemão soma uma dúzia de nomeações e agora, depois de quase trinta anos da vitória por O Rei Leão, coloca o prêmio de Duna embaixo do braço. Em Fotografia, a esperança de ver a primeira mulher vencedora na figura de Ari Wegner foi por água abaixo. Venceu Greig Fraser, nomeado no passado por Lion e super em alta devido à popularidade de Batman, filme que pode levá-lo à cerimônia de 2023.
Quando chegou a hora de Yuh-Jung Youn anunciar o prêmio de Ator Coadjuvante, a noite valeu a pena. Depois de, como a própria disse, reclamar que erraram a pronúncia do seu nome ano passado, a vovó de Minari pediu desculpas em antecipação se confundisse o nome de alguém na hora de ler o envelope. Mas não teve jeito, com direito a pausa dramática e a dizer “eu te amo” em língua de sinais, Troy Kotsur subiu ao palco, ovacionado por um público batendo palmas em ASL e apaixonado por seu carisma, desenvoltura e paixão.
Ciente de seu papel histórico, o ator de CODA não poupou elogios à diretora Siân Heder, agradeceu a todos que lhe deram oportunidades no passado e não deixou o bom humor de lado, referenciando o maior pescador marinheiro de todos e sua fome de espinafre. Yuh-Jung Youn segurou a estatueta do colega, e assistiu com os olhos brilhando enquanto ele agradecia à família e contava que seu pai, ótimo em língua de sinais e seu herói, sofreu um acidente que o impossibilitou de se mover, não podendo mais se comunicar com o filho.
Com lágrimas nos olhos, Kotsur dedicou o troféu dourado à família. A voz embargada e trêmula de seu tradutor transmitiu com voracidade a importância dessa vitória e da celebração de um filme como CODA. 35 anos depois de Marlee Matlin vencer um Oscar de Melhor Atriz por Filhos do Silêncio (Children of a Lesser God), se tornando a primeira mulher e pessoa surda a fazê-lo, Troy Kotsur entra para o time e se transforma no primeiro homem surdo a triunfar. Através da honraria entregue pela primeira atriz sul-coreana premiada pela Academia, a cerimônia de 2022 passa o bastão de coadjuvante entre dois atores provenientes de filmes exibidos, celebrados e aclamados no Festival de Sundance.
Disputa decidida há muito, Drive My Car foi escolhido o Melhor Filme Internacional, dando uma quinta estatueta para o Japão, mas apenas a segunda competitiva, 14 anos depois da vitória de Departures em 2009. Visivelmente emocionado e nervoso, o diretor Ryûsuke Hamaguchi teve sua fala cortada 2 vezes, não conseguiu falar tudo o que queria e foi retirado às pressas do palco. Discursando em inglês, o cineasta levou uma tradutora ao palco, mas a rapidez e o curto tempo dado pela Academia não foi o suficiente para que a mulher fizesse seu trabalho. Para o longa internacional mais aclamado do ano, e presente inclusive na disputa principal, a decisão foi desrespeitosa e imprudente.
Já numa disputa nada decidida, o prêmio de Roteiro Original ficou com Belfast, levando Kenneth Branagh ao palco do Oscar depois de 8 nomeações em 7 categorias diferentes. Indo na contramão do BAFTA (que escolheu Licorice Pizza) e do Sindicato dos Roteiristas (que na inelegibilidade de Belfast, premiou Não Olhe para Cima), a Academia escolheu liquidar uma dívida velha com o irlandês e finalmente o transformou em um vencedor do Oscar. Paul Thomas Anderson, por outro lado, já soma onze menções sem ver nem a cor do ouro. Em Documentário, venceu Summer of Soul, pela primeira vez na histórica marcando uma edição onde tanto o Melhor Filme quanto o Melhor Documentário saíram do Festival de Sundance.
O diretor Questlove, que já havia ganhado tudo o que era possível, dos prêmios do próprio Sundance, até o Spirit, o BAFTA e o Sindicato dos Produtores, subiu ao palco extremamente emocionado e reiterou que aquele momento não era sobre ele, e sim sobre as pessoas marginalizadas que precisam se curar da dor e usaram o Festival Cultural Harlem de 1969 para isso. O discurso, que aconteceu logo depois do desentendimento de Smith e Rock, foi um tanto ofuscado pelo ocorrido. Pelo menos os agradecimentos de Questlove não foram silenciados pela orquestra, que chamou atenção por todos os motivos errados (inclusive um sample de Africa, da banda Toto, na entrada de Daniel Kaluuya, que é inglês, e H.E.R., que é estadunidense).
Na parte musical, pelo segundo ano seguido, o segmento do In Memoriam foi guiado por batidas agitadas. O coral gospel foi intercalado com algumas personalidades falando palavras de afeto sobre os falecidos. Para homenagear a eterna Betty White, Jamie Lee Curtis apareceu com um filhotinho no colo e declamou palavras de amor para a amiga, que morreu poucos dias antes de completar 100 anos de idade. As apresentações musicais voltaram à cerimônia principal depois de um ano renegadas ao pré-show, mas não empolgaram como o esperado.
Beyoncé abriu o show diretamente das quadras de Compton, região onde as irmãs Williams treinavam tênis. Muito mais videoclipe do que apresentação, a performance Be Alive agradou os já acostumados com a grandeza e a presença divina da artista. De Encanto, Dos Oroguitas contou com os vocais de Sebastián Yatra, que tremia mas não deixou a peteca cair. A falta de um cenário elaborado, porém, chamou atenção, o que tentou ser remediado com dois dançarinos varrendo o palco com seus corpos em movimentos graciosos.
Reba McEntire soltou a voz ao som de Somehow You Do, canção que indicou Diane Warren pela 13ª vez ao Oscar, mas assim como o filme de que foi retirada, não fez barulho. A estrela da noite, como era de se esperar, foi Billie Eilish e sua versão noturna de No Time To Die, a eventual campeã em Canção Original. Com FINNEAS no piano, a jovem rasgou os vocais no tema que findou a era Daniel Craig frente ao espião e, mais tarde, deu sequência ao legado de Adele e Sam Smith, levando o ouro e se tornando a primeira pessoa nascida no século 21 a ganhar um Oscar.
Sem Chloé Zhao, a categoria de Melhor Direção foi entregue por Kevin Costner, que fez um discurso de apresentação longo, monótono e nada atraente. Quando subiu ao palco e entrou para a História, a vencedora Jane Campion reconheceu a dramaticidade das palavras do colega. Dessa vez com um discurso escrito para ser lido, talvez para evitar falas problemáticas, como aconteceu duas semanas atrás na cerimônia do Critics Choice Awards, a neozelandesa foi enfática nos agradecimentos mas não saiu dos protocolos.
Campion se junta a Kathryn Bigelow (Guerra ao Terror) e Zhao (Nomadland) como as únicas mulheres a vencerem Direção em 94 anos, além de ser a primeira indicada duas vezes na categoria. Ela havia disputado em 1994 com O Piano, ocasião em que venceu Roteiro Original e viu Steven Spielberg, a quem derrotou esse ano, ser coroado Melhor Diretor. No fim, esse foi o único prêmio de Ataque dos Cães (The Power of the Dog), o campeão de nomeações que perdeu onze de sua dúzia de menções, entre elas a principal, dada como vitória certa até três semanas atrás.
A categoria de Melhor Cabelo e Maquiagem foi exibida no pré-show, mas recortada para ser apresentada pouco antes de Melhor Atriz. Quem venceu nas duas disputas foi Os Olhos de Tammy Faye, é claro. Para finalmente tornar Jessica Chastain uma vencedora do Oscar, foi a vez de Anthony Hopkins ser ovacionado, um ano depois de ganhar por Meu Pai e não estar presente para agradecer. Assim como Will Smith, Chastain venceu em sua terceira nomeação, e por coincidência, nas categorias de coadjuvante, os vencedores estavam ambos indicados pela primeira vez.
Para fechar a noite, o público recebeu Lady Gaga ao lado da aparição surpresa de Liza Minnelli, marcando 2022 como o ano em que, entre Judi Dench, Hopkins e Liza, os idosos decidiram sair de casa e festejar. Comemorando os 50 anos de Cabaret, a filha de Judy Garland demonstrou entusiasmo e paixão pelo público. E já virou tradição: lendas do Cinema leem o nome do filme que ficará marcado pela eternidade. Jane Fonda se surpreendeu com Parasita, Rita Moreno selou a paz com Nomadland e Liza Minelli exalou euforia ao anunciar CODA (No Ritmo do Coração) como o vencedor do Oscar de Melhor Filme de 2022.
Só ficou surpreso quem estava por fora das conversas recentes. CODA venceu o Sindicato dos Atores, o Sindicato dos Produtores e o Sindicato dos Roteiristas, além do BAFTA de Roteiro Adaptado. Davi venceu Golias, na forma de um Ataque dos Cães destruindo a competição, vencendo todos os precursores em Direção e Filme, até chegar onde realmente importa, na cédula preferencial dos Produtores. Lá, a pegada agradável de CODA engrandeceu suas chances.
Desde que mudou seu método de votação, a Academia preza pelo consenso. Obras divisivas, como La La Land, Três Anúncios para um Crime, Roma e Ataque dos Cães, são desfavorecidas pelas cédulas preferenciais. Além de que, nos anos recentes, quando a Academia percebe uma mudança de ares, eles não voltam atrás: Green Book era a alternativa para que a Netflix não ganhasse com um filme nada acessível; Parasita era o sinônimo do voto por paixão contra um filme extremamente técnico mas sem apelo popular. CODA é o filme que te emociona, em embate com um outro muito mais especulativo do que descomplicado.
A vitória de CODA aniquila todas as estatísticas e dados que existiam. Vencendo Melhor Filme, a produção se tornou pioneira em muitos aspectos: é o primeiro filme a ganhar com três ou menos indicações e a vencer sem estar indicada em Direção ou Montagem desde Grand Hotel (1932); o primeiro filme a pular todos os festivais de outono e o primeiro remake de filme em língua não-inglesa desde Os Infiltrados (2006); o primeiro filme a vencer sem estar indicado na categoria principal do BAFTA desde Menina de Ouro (2004); o primeiro filme a vencer sem uma indicação ao Sindicato dos Diretores desde Conduzindo Miss Daisy (1989) e, por fim, o primeiro filme a vencer tendo estreado em Sundance.
As estatísticas existem para serem quebradas e refeitas. Tudo citado no parágrafo acima diz respeito a uma época em que o Oscar não admitia o mesmo número de membros internacionais como hoje, e também usava um método diferente para premiar a categoria principal. O triunfo de CODA abre espaço para que o futuro seja guiado pela paixão e não por números. Além disso, também existiu a forte e extremamente eficaz campanha da Apple nas últimas semanas de votação, tornando-a o primeiro streaming a abocanhar o Oscar mais importante da noite, anos depois de tentativas fracassadas da Netflix.
O reconhecimento para a obra de Siân Heder, baseado no francês A Família Bélier, gera revolta pelo caráter “menor” e “menos merecedor” que alguns podem qualificar a CODA. Longe da grandeza de Amor, Sublime Amor e Duna, da sutileza e da classe de Drive My Car e da relevância técnica de Ataque dos Cães, No Ritmo do Coração encerra a temporada de premiações de 2022 como o longa-metragem do carinho. O Oscar existe para premiar realizadores e profissionais e incentivar sua produção artística, e escolher um filme sobre uma família surda, com um elenco majoritariamente surdo, é fazer exatamente isso. CODA não venceu por cotas ou por migalhas, mas sim pela emoção transmitida com primazia pela diretora e pelo elenco, digna de aplauso e, isso mesmo, dos prêmios da Academia.
Não dá para negar que chega a ser cansativo repetir esses inúmeros dados a respeito de filmes dirigidos por mulheres. Sabe quando foi a primeira vez que um diretor homem foi nomeado duas vezes em Direção? Logo na terceira cerimônia, em 1930, com Lewis Milestone, King Vidor e Ernst Lubitsch, um empate triplo nessa estatística. Sabe quando dois filmes dirigidos por homens ganharam a categoria principal consecutivamente pela primeira vez? Um ano antes, com a dobradinha Wings e The Broadway Melody.
Na premiação de 2022, onde o foco poderia e deveria ser a celebração do Cinema, a retomada ao normal depois de anos em isolamento, a Academia resolveu focar em tudo, menos nos filmes. Piadas fora de tom, categorias entregues no pré-show sem audiência em larga escala, discursos cortados sem dó nem piedade e a completa desconsideração dos excluídos da premiação durante os discursos da mesma. Sabia que Riz Ahmed venceu um Oscar? Pois é, pena que quase ninguém pôde aplaudir, uma hora antes do “espetáculo” começar. Os curtas The Windshield Wiper e The Queen of Basketball também saíram vitoriosos, mas sem o mesmo prestígio que lhes eram de direito.
A justificativa de que o corte das categorias no ao vivo resultaria numa cerimônia mais enxuta também foi balela, já que a minutagem de 2022 passou das 3 horas e quarenta e cinco minutos, enquanto ano passado chegou a menos de três horas e vinte. Quanto à audiência, os números preliminares apontam para um aumento do número de espectadores, o que já se mostrava uma tendência entre o SAG e o Critics Choice Awards. Se isso for usado para manter a decisão de cortes no ano que vem, saberemos que a ABC só se preocupa com os números e os gráficos.
Se nem a Academia se importa com o Oscar, por que deveríamos nós? A resposta não é apenas simples, mas está escrita na nossa cara. A razão está no sorriso satisfeito de Ariana DeBose e nos olhos orgulhosos de Rita Moreno. Está na expressão desacreditada de Troy Kotsur e nos aplausos vibrantes de Marlee Matlin. Está no reconhecimento de Questlove, de Ryûsuke Hamaguchi, de Jenny Beavan, Greig Fraser e Hans Zimmer. Está no coração pulsante de Siân Heder, na vibração contagiante de Billie Eilish e na sinceridade brutal de Will Smith.
O motivo do Oscar ainda gerar repercussão, mesmo aos 94 anos de idade, está no legado de Anthony Hopkins, de O Poderoso Chefão, Pulp Fiction, Homens Brancos Não Sabem Enterrar, Juno e Cabaret. Está na emoção transbordando de Jessica Chastain e no sorriso de orelha a orelha de Jane Campion. O porquê da relevância e do amor ao Oscar está na energia de Lady Gaga e no entusiasmo de Liza Minnelli. Na espontaneidade de Yuh-Jung Youn e na memória de Sidney Poitier. Tudo volta ao cerne da questão, aquele ponto que a Academia e a ABC parecem não levar em conta: o Cinema.