Patrick de Souza
Na nossa cultura tão ocidentalizada, é normal que estejamos sempre voltados aos materiais produzidos pelas indústrias de massa norte-americanas. Nossas comidas, roupas e costumes sofrem enorme influência do Tio Sam, e acabamos por adotar seu mesmo estilo de entretenimento em séries e, principalmente, filmes. Acostumados com as grandes produções hollywoodianas, nomes como Tarantino, Hitchcock, Cameron e Burton são referências para muitos cineastas que desejam uma carreira promissora. Isso acaba tirando nossos olhos de obras de diferentes regiões ou gêneros.
As animações sofrem também deste mal, e acabam as vezes ofuscando grandes diretores. É o caso de Mamoru Hosoda, diretor de O Rapaz e o Monstro (Bakemono no Ko), considerado hoje um dos maiores diretores do gênero no Japão, tanto pelo estilo cativante de suas obras, que prende o espectador e o faz se envolver em suas tramas, independentemente de sua idade, quanto pelos seus lindos cenários e traços únicos, que casam perfeitamente com as temáticas que Hosoda adota.
Com um certo reconhecimento no Japão, Hosoda tem uma longa trajetória de animações, sempre mantendo a essência característica de desenvolvimento de personagens. Nos diversos estúdios em que passou (Toei Animation, Madhouse), dirigiu desde episódios de animes até longas de franquias como Digimon e One Piece, e chegou até mesmo a ser cogitado para dirigir outro grande clássico das animações japonesas, O Castelo Animado, do lendário Estúdio Ghibli. Hosoda deixou a produção por não conseguir trazer um conceito que agradasse os donos do estúdio. Em 2011, durante a produção de As Crianças Lobo, Hosoda deixou a Madhouse e estabeleceu seu próprio estúdio, o Estúdio Chizu, no qual continua até hoje e produz suas próximas obras.
Seu maior sucesso pode ser atribuído aos seus quatro últimos filmes, A Garota que Saltava no Tempo, Guerras de Verão, As Crianças Lobo e O Rapaz e o Monstro. Todos possuem o estilo que é a marca registrada de Hosoda: um cotidiano fantasioso. As personagens são apresentadas como pessoas normais, com hábitos, defeitos e problemas como todos os outros, sem nada de especial em si próprias, e isso torna a identificação do espectador com o personagem muito mais fácil. A peculiaridade está quando, por exemplo, a garota de colegial que adora passar suas tardes com seus amigos encontra uma pedra capaz de fazê-la voltar no tempo, ou quando uma mãe solteira luta para criar seus dois filhos, que são, na verdade, lobisomens.
A magia – no sentido literal – está nessa simples junção. Ao nos apresentar à personagens tão identificáveis e envolve-los num misticismo, Hosoda permite que nossa imaginação ganhe asas, nos trazendo e nos envolvendo emocionalmente com aquele mundo animado. Não é de se impressionar que seus quatro últimos filmes tenham sido tão aclamados pela crítica. Seu mais recente trabalho, O Rapaz e o Monstro, recebeu o prêmio de Melhor Animação de 2016 pela Academia Japonesa e faturou 5,4 milhões de ienes em sua semana de estreia.
O filme conta a história de Ren, um garoto que encara a repentina morte de sua mãe logo após o desaparecimento de seu pai. Descontente com seus guardiões legais, que não parecem se importar verdadeiramente com ele, Ren foge pelas ruas de Tokyo e acaba se encontrando em Shibuten, um mundo paralelo em que apenas monstros habitam, após terem se separado dos humanos anos atrás
Nele, o líder deseja passar seu manto para alguém digno, que seja um forte guerreiro, respeitável e possua discípulos que desejem aprender com ele. Um dos melhores candidatos seria Kumatetsu, se não fosse sua personalidade amedrontadora que afasta todos que se aproximam. Ren se fascina pelo monstro, e decide que será seu aprendiz. Kumatetsu o renomeia para Kyuta (Kyu significa nove em japonês, a idade de Ren), e as teimosas personalidades dos dois começam a entrar em choque.
O filme retrata o amadurecimento de ambos, a confiança inabalável que um constrói no outro durante o passar dos anos. Aprendem um com o outro, e Kumatetsu se prepara para o dia em que irá disputar com Iouzan, seu rival, pelo cargo de líder. Quando Kyuta completa 17 anos, encontra a passagem de volta para o mundo humano. Ao voltar para a sociedade, Ren sente vontade de se reintegrar, mas não deseja abandonar Shibuten, e se encontra dividido entre suas duas vidas.
O longa possui o mesmo ar de A Viagem de Chihiro, com a temática de um mundo novo e místico, onde o real e o imaginário se fundem, e também falando sobre o amadurecimento pessoal, superações e lições sobre como a confiança no outro é importante. Hosoda frequentemente traz esses temas em seus filmes, mas sempre numa abordagem diferente. O personagem principal, antes perdido no mundo, descobre seu lugar ou enfrenta o que precisar para conseguir atingir sua felicidade.
A ambientação do filme é perfeita, como é bem característico de Hosoda. O distrito no qual Ren se perde é Shibuya, a “Times Square japonesa”, um local no qual é fácil se sentir perdido e insignificante no meio de todas as pessoas que atravessam a avenida. Em uma vitrine, Ren enxerga seu próprio reflexo e se vê coberto em escuridão, representando o vazio interno que ele sente naquele momento. Sua ira, raiva e tristeza se personificam naquele reflexo, até que ele encontra a passagem para Shibuten e sua escuridão, por ora, desaparece.
O mundo dos monstros se assemelha a uma grande vila, com paisagens mais coloridas, que atraem o espectador para si. Os monstros se separaram dos humanos justamente pela escuridão que estes possuem. Eles temem o que um humano envolto pela escuridão (ou seja, alguém vazio, com medo, triste e enfurecido) é capaz de fazer. Esses temores se concretizam em Ichirohiko, outro humano vivendo entre os monstros. Adotado pelo rival de Kumatetsu desde bebê, viveu toda sua vida sem saber o porquê de ser diferente de seu irmão e de seus amigos. Ao crescer, criou um ódio pelos humanos ao ver o amadurecimento de Kyuta, e não aceita que seu pai perca para um rival que possui um discípulo humano.
Durante a narrativa, Kyuta/Ren chega perto de sucumbir à escuridão diversas vezes. O que acaba salvando-o é Chiko, o “mascote fofinho” do filme, que vive com Ren desde criança, e Kaede, uma garota que Ren conhece ao voltar à sociedade e que o ajuda a se reintegrar. Incentivado pela garota, Ren começa a estudar, prometendo a ela fazer o vestibular no fim do ano.
Kaede representa uma ligação de Ren ao mundo humano, outra parte de seu amadurecimento. Enquanto Kumatetsu e os amigos que Kyuta fez em Shibuten o ensinaram a lutar, ter equilíbrio e responsabilidades, Kaede incentiva Ren a procurar novamente seu pai, ajuda-o a estudar para que ele possa ter um futuro mais certo e tenta trazê-lo de volta à razão em seus ataques de fúria (sendo a “luz” contra sua “escuridão”). Assim, o mundo que Kyuta viveu em sua infância vai dando espaço ao mundo adulto que Ren terá que enfrentar daqui para frente.
O final passa uma sensação completamente gratificante, pois todos os conflitos daquele pequeno universo (que, mesmo estabelecido em duas horas, parecia ser enorme) são resolvidos. Os créditos, como em outros filmes de Hosoda, mostram uma retrospectiva do filme, trazendo uma reflexão de como as personagens evoluíram e encontraram seus respectivos lugares no mundo.
Entre traços simples e diferentes, designs incríveis de personagens e trilhas sonoras perfeitas para cada momento (destaque para o clímax do filme em Shibuya), O Rapaz e o Monstro é perfeito para todas as idades, sendo, com certeza, uma das melhores animações do ano de 2015. Com a aposentadoria de Hayao Miyazaki, o prestigiado diretor do famoso Estúdio Ghibli, Hosoda está sendo cogitado para ser o próximo “grande mestre” do estilo, e com todo seu sucesso até o momento, parece estar seguindo o caminho certo.
*Texto realizado por Patrick de Souza para a disciplina de Filosofia, da graduação em Jornalismo da UNESP.
Gostei bastante do filme.