Kayane Cavalcante
Em um mundo que rotula as pessoas, que as faz se sentirem estranhas, mal vistas e menosprezadas por serem quem são, levantar sua voz e usá-la como uma arma é um ato de coragem. Nesse contexto, o livro O ódio que você semeia, da magnífica autora afro-americana Angie Thomas, me deu uma lição que vou levar pelo resto da minha miserável vida de leitora, que é: minha voz é importante e não devo permitir que alguém tente me silenciar, pois quando nos calamos permitimos que um ciclo de injustiças criado pela sociedade elitizada continue e evolua. Assim, quando vamos às ruas em manifestações e escrevemos tweets cobrando pelos nossos direitos como seres humanos, estamos quebrando esse ciclo preconceituoso que já dura séculos.
Além disso, os assuntos polêmicos abordados de maneira intensa e honesta nesta obra fazem com que o leitor se sinta desconfortável, mas é uma sensação boa, conforme o estimado escritor Franz Kafka afirmou: “Queremos livros que nos afetem como um desastre. Um livro deve ser como um machado diante de um mar congelado em nós”. De fato, O ódio que você semeia vai te fazer chorar de raiva diante de tantas injustiças que lhe são apresentadas, é como se fosse um verdadeiro tapa na cara para fazer com que quem o leia olhe para o seu redor e preste atenção no quanto uma pessoa pode ser julgada pela cor de sua pele.
As vidas das pessoas pretas nas Américas são marcadas pela tragédia. Desde o início, a história do nosso país possui uma cicatriz feia e vergonhosa, somos o legado de atos horrorosos contra os povos que foram julgados como os sem almas e os selvagens pelo homem branco. Os povos africanos foram escravizados, torturados, tiveram sua identidade apagada, sua liberdade arrancada e sua voz silenciada para trazer riqueza para os brancos. A grande nação que é o Brasil foi construída sob o barulho do chicote nas costas de um preto. Contudo, infelizmente, não aprendemos que todos nós somos iguais independente da cor da pele. Você já viu quantos pretos morreram pelas mãos da polícia só hoje? Isso porque foram confundidos como bandidos ou pelo cabo de uma escova ter sido semelhante ao de uma arma, como aconteceu com o personagem Khalil.
O ódio que você semeia traz conteúdos que precisam ser discutidos em escolas, faculdades e na mesa do almoço de domingo com toda a sua família presente, pois são tão necessários quanto respirar. Se trata de falar sobre a dignidade humana, o racismo estrutural, brutalidade policial, casais inter-raciais, desigualdade social e, o principal, a voz, a importância de nós jovens não termos nossa fala silenciada.
O best-seller apresenta a jornada de Starr Carter, uma adolescente afro-americana moradora da periferia Garden Heights, nos Estados Unidos, que presenciou o assassinato de Khalil, seu melhor amigo de infância, que foi alvejado com três tiros nas costas estando desarmado. A heroína da história foi ensinada pelos pais a não ter medo da polícia, mas que ela deveria ficar atenta a, por exemplo, fazer com que suas mãos estejam à vista. Esse é um dos fatores mais marcantes no decorrer do livro, pois mostra-se como um paradoxo, já que, teoricamente, a segurança pública foi feita para proteger os cidadãos como um todo, mas, na verdade, parece que foi produzida apenas para proteger a elite branca.
Logo após a tragédia, Carter se vê no dilema de falar sobre a injustiça feita contra seu amigo, pois a polícia tenta calá-la e distorcer o ocorrido, fazendo com que, com a ajuda da mídia, Khalil fosse visto como mais um traficante de drogas. Fora da ficção, a vítima ser difamada pela imprensa é algo muito recorrente nos Estados Unidos, e a autora aborda de maneira fiel esse problema. Os telejornais da história expõem o garoto como o culpado do crime, destacando sobre a sua origem ser de um bairro perigoso e carente, reconstruindo sua imagem como um jovem arrogante que agiu de maneira agressiva com um guarda honesto, e, consequentemente, alteram de forma estratégica a narrativa do delito, fazendo com que o super-herói fosse o assassino, dando ênfase na ideia nefasta de “bandido bom é bandido morto”.
Starr se movimenta entre dois mundos: o bairro pobre onde mora e a escola “de brancos” onde estuda. Nessa linha tênue entre ambos lados, existe uma certa harmonia que a própria jovem tenta equilibrar, em que vive duas vidas dentro de uma. Ela não pode ser totalmente negra no seu colégio porque não se encaixa, e não é negra o suficiente para o bairro onde mora. Essas mudanças de ambientes da personagem mostram ao leitor o quanto a sociedade é estereotipada, pois cada comunidade tem seu modo de vida, estilo de roupas que usam e músicas que escutam, e a protagonista enxerga que o jeito que os seres humanos se segregam é muito errado, e só serve para que mais preconceitos surjam em ambas as partes.
Outro ponto positivo sobre a obra literária é a profundidade dos personagens, todos são bem desenvolvidos e Starr é uma das protagonistas mais fortes que já tive o prazer de ler sobre, no decorrer da história vemos como ela amadurece e sua criticidade é criada de maneira chocante e surreal. Ela é uma jovem com um passado traumático e que se divide em dois mundos, que não tem nada além da voz como sua espada para enfrentar os dragões do cotidiano. Isso mostra aos jovens leitores o quanto eles podem fazer para mudar a condição de vida dos mais injustiçados, a diferença entre a família rica e a pobre e assuntos tão problemáticos pelo ponto de vista de uma adolescente.
Starr Carter desafiou todos os seus obstáculos e inseguranças e testemunhou contra o policial branco que matou seu amigo, mas a decisão final foi apenas a ignorância da justiça dos Estados Unidos, a resposta foi um silêncio contido, como se a vida do jovem garoto não fosse nada. A ira inebriante da nossa heroína foi demais, ao ponto dela ir às ruas e gritar na manifestação pela vida perdida do seu amigo, porque ela importa, a vida dos pretos importa. Todos nós somos um George Floyd que foi sufocado desumanamente por um policial, ou então um João Pedro de apenas 14 anos que foi assassinado dentro de sua própria casa pela polícia.
Sobre as relações da Starr na sua vida de “dois mundos”, como a própria Hannah Montana, as amigas de escola vão ganhando destaque importante no decorrer da história, principalmente Maya e Hailey, fazendo com que fique de forma real e concreta com a situação da protagonista. Entretanto, se quiser um somatório de tudo que há de desprezível em uma pessoa, junte all lives matter, “nem todo homem” e racismo reverso em uma personagem e você tem a Hailey, ela é insuportável. Já Chris, o namorado fofo, vive algumas realizações importantes com ela – a relação entre os dois tem alguns receios, uma vez que Starr tem muitas hesitações a respeito da cor de suas peles, do julgamento alheio, do que seu pai e as outras pessoas pensarão ao ver um garoto branco com uma garota negra, foi um par romântico bem trabalhado.
A respeito da interação da família de Starr, o apoio que eles dão à ela é lindo e fundamental, em minha opinião eles dão vida ao livro, tornando ele dinâmico e meio cômico. Maverick, o pai, um ex-presidiário que busca todo dia fazer o melhor para sua família; Lisa, a mãe, que trabalha dobrado para cuidar da família e da sua comunidade; Seven, o irmão mais velho, que se preocupa com todo mundo e quer proteger a todos além da sua capacidade; até mesmo Sekani (me apaixonei por ele), o caçula, com sua fome pelos holofotes e alívio em todo tensão por sua ingenuidade.
Um fato curioso sobre o título do livro é o seu real significado. A obra em sua versão original se chama The Hate U Give, no qual suas iniciais formam THUG (tradução literal: bandido), que veio de uma letra escrita pelo rapper americano 2PAC (Tupac Shakur), em que sua frase inteira é The Hate U Give Little Infants Fucks Everyone (O Ódio que você dá a pequenas crianças f*de com todo mundo), ou o famoso THUG LIFE (vida de bandido). Essa frase é uma crítica contra o racismo, que afeta crianças negras e as levam a seguir uma vida criminosa.
O ódio que você semeia tem uma vibe ativista incrível. Livros que discorrem sobre críticas sociais e direitos humanos eram queimados porque desafiavam a autoridade dos governos, pois os ditadores sabiam que a pessoa que lê, que interpreta, que é um ser politicamente consciente é uma arma para os políticos. A educação muda tudo, faz a revolução, desafiando o status quo e inovando. Em suma, foi uma aventura comovente e impactante, a linguagem é feita de forma simples e direta, fazendo com que o livro fique quase que ilustrativo. É o romance de estreia de Angie Thomas e foi o primeiro a vencer o Walter Dean Meyers Grant, em 2015, na categoria We Need Diverse Books e alcançou o primeiro lugar na lista do The New York Times. Foi uma honra ler o seu livro, Angie.