Never Rarely Sometimes Always: com que frequência você encontra a violência?

“Queria falar sobre todas as barreiras estruturais que existem para impedir que as mulheres tenham autonomia sobre seus corpos” disse Eliza Hittman, diretora e roteirista do filme (Foto: Focus Features)

Raquel Dutra

Violência é qualquer ação por meio da qual você trata o outro como objeto dos seus desejos, negando a ele elementos que chancelam sua própria condição de ser humano: sua liberdade, sua consciência, sua integridade, sua autoridade e emancipação sobre si mesmo…” disse mais ou menos assim minha professora de filosofia do ensino médio uma vez, apresentando uma definição pra esse termo que, às vezes de forma invisível, se faz quase onipresente na nossa realidade. 

E compartilho ela aqui – junto de uma memória profundamente pessoal – porque Never Rarely Sometimes Always (Nunca Raramente Às Vezes Sempre, numa tradução livre, assim mesmo sem pontuação) exemplifica perfeitamente essa definição. Além de apresentar uma narrativa sensível e (ainda) necessária sobre aborto e direitos reprodutivos, o filme é também um conto sobre violência, em suas mais diversas formas e em seus mais profundos impactos. 

O longa estreou acumulando prêmios e indicações no Festival de Cinema de Sundance e no Festival Internacional de Cinema de Berlim (Foto: Focus Features)

Aqui, a introvertida Autumn é o principal – e não o único – foco da violência, que já se manifesta de formas não-físicas nas primeiras cenas do filme. De início, tudo o que sabemos sobre a jovem interpretada pela estreante Sidney Flanigan é que ela tem dezessete anos, vive em um lar desajustado e está indesejadamente grávida. 

Depois de descobrir a gestação, ela procura unidades de saúde do local onde mora, uma cidade pequena no interior da Pensilvânia, e manifesta seu desejo em abortar. A médica do local, que de início demonstrava compreensão e preocupação pela situação da adolescente, desaprova a decisão e Autumn percebe que não vai conseguir decidir sobre si mesma naquele contexto.

Conforme a gravidez avança, a jovem fica cada vez mais desconfortável e perdida. Aí é que sua prima, Skylar (Talia Ryder), que trabalha junto com ela num supermercado da cidade, percebe que algo está acontecendo (e é a única a notar). Entendendo a situação, faz o que pode para ajudar e juntas elas embarcam em segredo com destino à cidade de Nova Iorque, onde a legislação é um pouco mais flexível, para realizar o procedimento e findar a gravidez de Autumn.

Uma das responsáveis pela realização do filme é a produtora Pastel, de Barry Jenkins e Adele Romanski (o diretor e uma das produtoras de Moonlight: Sob a Luz do Luar), cuja missão é “trazer para a tela narrativas raramente abordadas no cinema” (Foto: Focus Features)

A trama “simples” é atravessada pelas implicações das diversas violências que as personagens sofrem. Explicitadas nos silêncios, elas acarretam em vários imprevistos que se tornam problemas cada vez maiores. Aos poucos, nós, do outro lado da tela, nos acostumamos com a dinâmica e se torna natural esperar pelo pior. 

Tudo já começa em casa: sem qualquer tipo de suporte, atenção ou cuidado por parte de sua família, que sequer notam a gravidez, Skylar e Autumn têm de lidar com tudo sozinhas. Escola e amizades não são capazes de construir ambientes seguros e elas são constantemente assediadas no local de trabalho. Com as unidades de saúde, que depois Autumn descobre que ofereçam diagnósticos equivocados sobre o tempo da sua gravidez, ela também não pode contar.

Com essas circunstâncias de fundo, o filme silenciosamente escancara as violações que as jovens encontram: privação de direitos, de segurança material, de suporte emocional, de cuidados e de meios que confiram à elas integridade para exercerem sua autonomia enquanto seres humanos. Todas essas esferas são profundamente violadas por diversas instâncias da nossa sociedade: a família, a escola, religiosos, as legislações, aspectos financeiros, morais conservadoras, figuras carregadas de misoginia, patriarcalismo, sexismo… cada um à sua torturante maneira.

Uma das produtoras do longa revela que o “drama sobre aborto sem estrelas de cinema” não foi um projeto fácil de financiar (Foto: Focus Features)

E para determinados grupos de pessoas, esse cenário de violações soa muito familiar. Tão ordinário que é completamente natural e compreensível que alguns assistam todo esse drama sem derrubar uma lágrima. Não por ausência de compaixão e identificação, mas porque é o nosso cotidiano pura e atentamente retratado. Coisas com as quais convivemos e assistimos pessoas próximas de nós enfrentarem todos os dias.

Esse efeito só é possível graças aos caminhos que Eliza Hittman (Parece Amor e Ratos de Praia), diretora e roteirista do filme, escolhe para construir a narrativa. Entre cineastas que estabelecem seu prestígio sobre personagens femininas humilhadas e graficamente expostas à violência e outros que ousam suavizar nossas histórias, Hittman não espetaculariza nem ameniza as violações às quais suas personagens são submetidas. Com um olhar profundo, ela expõe como elas se concretizam na realidade, quase sempre subjetivamente. 

A diretora aproveita também para criticar a própria indústria que trata narrativas femininas como um nicho ao não colocar a jornada de Autumn e Skylar diante de nós para o nosso entretenimento. Never Rarely Sometimes Always não se explica, não se contextualiza, e não faz questão alguma de nos inteirar de acontecimentos anteriores ao seu início ou orientar nossa empatia pelas personagens. A gente pega o bonde andando, vai entendendo aos poucos algumas informações e outras simplesmente não entendemos. Apenas adentramos em sua atmosfera hostil e verossímil como cúmplices impotentes das duas adolescentes.

Em um dado momento do filme assistimos um grupo de religiosos protestando em frente a uma clínica de aborto. De novo, um cenário muito familiar (Foto: Focus Features)

A nossa realidade cotidiana crua não fica só no plano da concepção e é criada também tecnicamente. Trilha e sonorização são quase inexistentes, os silêncios incômodos não são preenchidos e as câmeras raramente saem do campo de visão das adolescentes ou perdem elas de vista. Poucos personagens concretizam a desoladora sensação de solidão e desamparo que as garotas enfrentam. Cores frias e apáticas constroem imagens que poderosamente parecem lembranças esmaecidas, gerando aquela sensação de “eu já vi isso acontecendo antes”. 

Usando estes suportes para mergulhar em sinceridade, Hittman não quer tornar atrativo nenhum aspecto do filme. É aqui também que a proposital ausência de qualquer contextualização e aprofundamento na pessoalidade das personagens faz todo o sentido. Ela simplesmente não é necessária. Ou você pesca as nuances se identificando com a realidade das garotas, que assim como nós estão sempre expostas às tais violências e por isso sempre alertas e tentando lidar com as consequências delas, ou não. Tudo é uma janela direta do nosso cotidiano, que vai ser compreendida de uma forma muito íntima e poderosa por algumas pessoas. Outras sequer repararão.

O filme foi lançado comercialmente nos Estados Unidos em março deste ano, e no Brasil sua estreia foi prejudicada por conta do fechamento dos cinemas (Foto: Focus Features)

Never Rarely Sometimes Always também não faz questão alguma de saciar ou conservar curiosidades sobre a vida pessoal de Autumn. Capturando nossa própria indiscrição destrutiva, o filme grita nas entrelinhas que questões como a circunstância em que ela engravidou, de quem ela engravidou ou como ela engravidou simplesmente não importam. A decisão do aborto é algo que compete simplesmente à ela. 

Por isso é que o longa também não se propõe a discutir o aborto, porque simplesmente não é algo a ser discutido. Não ali, em meio aquelas jovens mulheres. E não vai ser aqui, em meio à nós e dentro desse texto. Tomamos essa questão como algo já discutido, superado. A única opinião a respeito dele que importa é a de Autumn ou a da mulher que estiver diante da situação em que ele, por qualquer motivo, se faça uma opção. Ponto.

Com a temporada de lançamentos bagunçada por conta da pandemia, a produção independente pode encontrar seu lugar no Oscar 2021 (Foto: Focus Features)

Como se todos esses silenciosos socos no estômago não fossem o bastante, Never Rarely Sometimes Always faz tudo o que faz sem ser o que esperamos de uma obra que trata sobre violência, muito menos sendo violento. É sim incisivo e forte aos olhos sensíveis à narrativa franca daquelas jovens, mas por todas as suas construções, também é gentil. Num equilíbrio perfeito de realidade crua e consolo, o longa trata de temas difíceis com uma sutileza ímpar e, talvez o mais importante, com respeito à quem o sofre – que só poderia surgir de uma pessoa que também o sofre.

Desse jeitinho é que Never Rarely Sometimes Always triunfa com perfeição em seu cenário ordinário, que cria o ambiente exato para que nossa realidade violenta seja naturalmente escancarada. E o título curioso que parece desconexo se justifica na cena mais angustiante do filme, enquanto as lembranças mais doloridas da protagonista são remexidas sem qualquer pausa no cenário mais seguro em que ela esteve o filme todo. Neste momento, o gosto amargo de memórias difíceis também pode causar um nó na nossa garganta (portanto, se você já sofreu violência sexual e/ou foi marcada por algum aspecto da violência de gênero, vale o alerta: cuidado com os gatilhos).

Como disse o próprio Barry Jenkins, “as pessoas vão achar que sabem como vai ser a aparência e a sensação de um filme sobre esse assunto, mas Eliza é tão diferente que não eles não saberão” (Foto: Focus Features)

O impacto de Never Rarely Sometimes Always vai muito além de sua abordagem já acertada sobre gravidez na adolescência e aborto. Lembrando daquela definição, o filme demonstra perfeitamente que a violência não acontece somente pontual e visivelmente, mas também em suas mais diversas, sutis e imagináveis formas. Elas minam nossa condição de liberdade – e é por onde também minamos as dos outros -, integridade e consciência quase sempre subjetivamente e é aplicada como uma forma de exercer controle e poder. Na maior parte das vezes, elas não são produzidas por um indivíduo em especial, mas existem na própria construção da sociedade. A partir disso, também se transformam em ciclos que sustentam opressões e que se retro-alimentam: uma origina e sustenta outra, que sustenta e origina outra, e assim por diante.

No fim, todas as construções do filme estão ali para relembrar outra verdade dura que indivíduos violentados têm de encarar: nessa realidade universalmente violenta, suas consequências nos perseguem onde quer que estejamos, obviamente nos espaços “propícios” e similares àqueles onde sofremos inicialmente, mas também permanecem nos ambientes mais seguros possíveis. E ainda que às vezes consigamos nos livrar parcial e momentaneamente delas, como Autumn faz no final esboçando uma reação genuinamente feliz pela primeira vez durante os 100 minutos de filme, sabemos, assim como ela, que enquanto nossa realidade for essa, algumas consequências, marcas e outras violências ainda estarão ali. Sempre.

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