Vitor Evangelista
O novo filme de Noah Baumbach pode ser caracterizado como o reflexo honesto de um grande pavor do ser humano: o de acabar ciclos. A grande estrutura familiar que desmorona, a mudança entre cidades e o fim de uma relação que se constrói em diversas facetas e camadas, aqui temos amor, amizade, dor, medo. O diretor cria um ‘pesadelo’ à luz do dia quando conta o fim do matrimônio entre Nicole (Scarlett Johansson) e Charlie (Adam Driver). História de um Casamento é, acima de tudo, sobre como lidamos com sentimentos que não cabem mais onde estavam.
Noah Baumbach (Frances Ha, Mistress America) encerrou em 2013 sua relação com a atriz Jennifer Jason Leigh, com quem teve um filho. E, mesmo que o cineasta negue o fator autobiográfico da obra, ele admite que História de um Casamento (Marriage Story, no original) é um trabalho pessoal. E como isso significa muito mais. A filmografia de Baumbach, como um todo, sempre estudou as relações interpessoais de casais norte-americanos à flor da juventude. Por mais que as problemáticas abordadas agora possam soar superficiais ou desprovidas de pesos, o filme ilustra muito bem uma leitura franca de amor e frustração.
A começar pelo tom que ele dá início ao filme. Uma colagem de momentos, uma narração em off que lista o que um cônjuge ama no outro. Enquanto Baumbach nos apresenta seus dois protagonistas, por trás das cortinas ele mostra por onde foi se esvaindo o sentimento que uma vez os uniu. Quando o plano finalmente corta para o presente, Adam Driver e Scarlett Johansson estão distantes. Tanto física quanto emocionalmente. Separados por sofás pastéis e pela luz incólume da fria Nova Iorque que inunda o consultório médico em que se encontram, eles estão separados, também, por um terapeuta que lida com divórcios.
Na escolha de fisgar o espectador com resquícios de uma relação amorosa em seu auge, o diretor (que também assina o roteiro do filme) dá as cartas da produção que está por vir: para olharmos e entendermos uma união, seu fim é tão primordial quanto seu início. Muito pode ser dito e ouvido sobre casamentos no momento que acabam. A advogada Nora (Laura Dern) é essencial para comprovar essa máxima, abrindo os olhos de Nicole ao oferecer uma visão de fora para toda a situação. Um filme com várias interpretações e olhares, História de um Casamento em momento algum se mostra imparcial ou cinzento quanto a que lado tomar.
Mesmo com a preferência do pequeno Henry (Azhy Robertson) pela mãe, ‘he’s in a mommy phase, sorry’ pontua Nicole a certo momento, o filme parece sempre pender para o lado de Charlie. Embora tratando-se de uma abordagem masculina e pessoal de uma história quase baseada em fatos, a produção nunca vilaniza a personagem de Johansson ou coloca uma auréola no de Driver, todavia, o espectador tem a oportunidade de ponderar sobre as atitudes dos personagens. Esse pequeno elemento só realça uma vontade de conferir essa mesma crônica sob a ótica da mulher; quem sabe um dia.
Com a chegada da temporada de premiações, os filmes concorrentes podem ser divididos em seletos grupos. Existem as produções carregadas em atuação, as pautadas em roteiro e direção e aquelas que se esbaldam nos setores técnicos do cinema, como fotografia, trilha sonora e design de produção. História de um Casamento pode se alavancar em qualquer uma dessas designações. O peso do elenco é o que dá sustância às duas horas e quinze minutos de duração. O roteiro e a direção de Noah Baumbach são assertivos ao pentearem uma narrativa brutal e injusta, mas sempre dosando humor e leveza em pequenos momentos. E todo o aparato técnico estrala excelência.
Scarlett Johansson é uma atriz de teatro que sempre viveu à sombra do marido diretor. A construção de sua Nicole é cirúrgica ao não demonstrar essa sensação de segundo plano logo de cara. Apenas quando ela marca a reunião com a advogada que as linhas se ligam e ela percebe o tamanho da ferida que cauterizou ao longo dos anos de casamento. Ferida essa que se abre quando ela recebe a oportunidade de voltar a morar em Los Angeles para estrelar um seriado. A atriz remói sentimentos afogados, amarga palavras não ditas e ainda consegue convencer ao gritar com Charlie, mas é sincera também ao ouvi-lo.
A questão geográfica Los Angeles e Nova Iorque é o que mais machuca Charlie. Sem considerar a guarda de Henry, é claro. Adam Driver, que foi um ator em ascensão anos atrás, agora reafirma seu talento. Multifacetado, sem dúvidas ele é merecedor de receber a estatueta de Melhor Ator no Oscar do ano que vem. Seu diretor de teatro Charlie, por outro lado, passeia entre o individualismo e a negação. ‘We’re a New York family’, ele repete uma porção de vezes. Um personagem como Charlie é duro de trabalhar por alguns motivos. O primeiro é cair no comodismo ou numa performance barata e fora de tom. A outra dificuldade é a de construir uma ponte que una empatia e julgamento, tanto para o público que assiste o filme quanto para os personagens que o vive. E Adam Driver se sai bem na demonstração de um homem que não consegue mais estar no controle da situação. Se, no teatro, era ele quem dava as cartas, agora na vida real, as variáveis se complicam.
A relação entre Charlie e Nicole, amorosa e profissional, é amálgama poderosa das pessoas que eles são no presente. E a inevitável ruptura dessa unidade reverbera em frontes distintas. A cena da brincadeira com a faca é precisa ao ilustrar o estado que um fica sem o outro. Longe de Nicole, Charlie é desatento e suscetível a se machucar. O filme metaboliza quase uma representação cartunesca do casamento entre eles. O inverso da kryptonita e do Superman, sem a esposa, sua vulnerabilidade aflora. E ele faz de tudo para que Henry não pesque nenhum desses elementos. Talvez nas nuances entre suas reações ao mundo lá fora versus seu comportamento com o filho, Driver é uma força da natureza. Ele encontra espaço até para cantar, numa sequência sem cortes, crua e que diz muito sobre evolução, sobre seguir em frente e também sobre como lidar com pesadelos.
‘This will be all over soon’, o advogado vivido por Alan Alda assegura a Charlie. A frase dita sobre o processo de divórcio do casal, também se adequa aos pesadelos que experienciamos. O diretor opta por narrar sua melancólica crônica sem diálogos expositivos ou uma passagem de tempo mastigada para a audiência. Esses ‘respiros’ entre as cenas vem na base um leve fade-out, que apaga e tela e a acende logo em seguida. Quase como um fuga, uma espécie de retomada da consciência para então depois voltar ao estado de sonolência. Essa escolha narrativa-estética denota um inconsciente de Noah Baumbach, que todos os acontecimentos de História de um Casamento poderiam facilmente caracterizar um sonho ruim. E o pior de tudo é que não há escapatória, é apenas a vida.
A cinematografia de Robbie Ryan realça o lado onírico do filme ao filmar estático os cenários coloridos em tons pastéis. Uma sensação de latência ecoa pelos ângulos abertos, quase pinturas, que anestesiam quem assiste. A iluminação repercute a limpeza e a nitidez dos fatos roteirizado por Baumbach, existe um afinco ao construir sequências claras, tanto técnica quanto artisticamente. A porção do filme que mostra uma longa briga de Nicole e Charlie é filmada numa tacada só, num vai-e-vem pela locação interna da residência do diretor. Esses caprichosos atributos dão todo o palco necessário para a dupla de protagonistas elevarem o nível dramático do filme.
E Laura Dern faz o mesmo. A veterana de Hollywood e verdadeira estrela de Big Little Lies sai na frente na corrida pela estatueta de Melhor Atriz Coadjuvante no Oscar. Sua performance como a advogada de Nicole, Nora, pode soar descompassada à primeira conferida. Um tanto fora do eixo central do filme, Nora se beneficia do magnetismo de sua intérprete, acrescido do autêntico texto de Baumbach, que sempre entrega a ela monólogos inspiradores e extremamente memoráveis. Tudo é justificado quando o ponto do filme é compreendido: Nora (e Dern, em conjunto) é complementar à trama, sua participação no filme é toda voltada a fornecer as melhores deixas para os protagonistas se iluminarem por completo, validando sua atuação como componente crucial para a veracidade de História de um Casamento.
Os sentimentos conflitantes no fim da relação ajudam a conceber pequenos momentos que tornam críveis as dificuldades e incertezas que o filme transmite. Quando Charlie fecha a porta dos armários, quando ele apaga as luzes ou quando procura um barbeiro para cortar seu cabelo. São essas breves piscadelas que emocionam. Os sorrisos ao lembrar do passado, e a dor de sair da zona de conforto. Em História de um Casamento um simples ato como amarrar os cadarços é gatilho para um torrencial de lágrimas a seguir.
Até mesmo as extravagâncias do roteiro e da direção de Noah Baumbach ornam no conjunto da obra. Os momentos musicais, o sangue que não estanca de maneira nenhuma e as fantasias de Halloween apoiam e suportam os medos e os amores de História de um Casamento. Olhando em retrospecto, essa produção da Netflix é latente ao versar sobre como, por mais utópico que pareça, o amor carrega um caráter transformativo e metamorfo. E não há nada de errado nisso.