Vitor Evangelista
A TV atual está repleta de shows idealizados por indivíduos com um tato único. Seja a surreal Atlanta de Donald Glover, passando pela dramédia teatral Barry de Bill Hader e chegando no cósmico urbanista Boneca Russa de Natasha Lyonne. Todos esses seriados transbordam originalidade e um talento excepcional em reinventar situações problemas já batidas na arte. Mas nada, repito, nada, chega perto da dolorosa poesia de Phoebe Waller-Bridge em sua Fleabag.
Parceria da BBC Three com a Amazon Prime Video, a criação da britânica só ganhou uma segunda temporada três anos depois de sua estreia, lá em 2016. Na época, atiçou olhares de críticos e público, mas não chegou ao mainstream. Tudo mudou quando Waller-Bridge anunciou uma sequência para a história de luto e perdas de sua protagonista sem nome.
O primeiro ano de Fleabag apresenta essa mulher em processo de luto. Na casa dos trinta, a personagem (que presumimos ser batizada como a série), lida com a morte da mãe, a perda da melhor amiga e seus conturbados relacionamentos familiares. Mas, o que difere o seriado da maré do comum é a mente genial que escreve e atua, Phoebe Waller-Bridge.
Responsável pelo astuto primeiro ano de Killing Eve, Waller-Bridge imprime em sua Fleabag um misto de angústia e perdição. Lado a lado com um humor que rasga acidez e consegue colocar pontos importantes em voga, tudo isso em episódios de menos de trinta minutos. Fleabag ainda quebra a 4ª parede, ri com a audiência e debocha dos demais personagens em cena junto de nós. Somos seus ardilosos cúmplices.
Em entrevista ao El País, Waller-Bridge aponta que a exploração da sexualidade feminina é o que faz o seriado ser tão comentado e devidamente aclamado. Para ela, a mídia sempre representou a mulher como um ser receptivo ao sexo, mas nunca propriamente ativo nele. Ponto esse que é virado de cabeça para baixo no seriado, mostrando uma mulher madura, extremamente sexual e que não se envergonha em momento algum. Ela, aliás, prefere se divertir com seu passado ao invés de lamentá-lo. Fleabag pode ser apontada, inclusive, como a série mais sensual do ano, isso sem contar com nenhuma cena de nudez.
Waller-Bridge tinha dado Fleabag como finalizada após o fechamento do primeiro ano. Tudo mudou, novamente, quando a ideia do Padre (Andrew Scott) veio à tona. Toda a persona de um homem sacro, em contraponto com as extravagâncias (impuras) da protagonista chamaram a atenção da autora, que materializou o segundo ano todo ao redor do duo.
Mas a trama não fica só restrita a isso. Os seis episódios da segunda temporada dão bastante espaço para Claire (Sian Clifford, exuberante), irmã da protagonista, assim como para a indomável Madrinha (a arisca Olivia Colman). Essa é uma série sobre mulheres fortes, que se digladiam em cena, assim como sua prima, Killing Eve.
Enquanto Claire lida com um casamento infeliz, a performance de Sian Clifford, indicada ao Emmy de Atriz Coadjuvante, consegue ordenar o caos que ronda a mente da personagem. Teimosa e com um humor que trabalha na constante negação da piada, Claire se destaca no Episódio 3, onde tem que organizar um prêmio para Mulheres de Negócio.
Na outra ponta do triângulo, Olivia Colman. A vencedora do Oscar por A Favorita consegue moldar uma personagem odiável e cheia de ressentimentos. A Madrinha está noiva do Pai (Bill Paterson), e o Padre é quem vai oficializar a cerimônia, daí a rixa silenciosa que a mulher trava com Fleabag. Sempre munida de um comentário asqueroso, Colman cristaliza num sorriso toda a maldade e o requinte que a personagem despeja em cena. Ela também está indicada ao prêmio de Atriz Coadjuvante.
O Pai tem pouco espaço, mas protagoniza um momento (a cena do sótão) recheado de ternura e verdade. Verdade essa que preenche cada linha do texto de Fleabag, também assinado por Waller-Bridge. O seriado sabe desconstruir piadas prontas (o fagote na mão) mas o trunfo mesmo é conseguir extrair humor do drama carregado que uma gama de personagens densos portam.
As sacanas explosões de Martin (Brett Gelman), marido de Claire, arrancam risadas mas o que fica marcado são os pequenos gestos e falas, que demonstram que ali estão representações verossímeis do mundo real. Phoebe Waller-Bridge é mestre em tridimensionalizar todo e qualquer personagem que coloca em tela, sejam seus coadjuvantes ou as brilhantes atrizes convidadas Fiona Shaw e Kristin Scott Thomas (ambas indicadas ao Emmy), que possuem uma cena cada e mesmo assim explodem em tela.
O grande tema da segunda temporada é a religião. Sem nunca se tornar pedante ou cansativa, a série revigora a visão do homem da igreja, assim como as noções do sagrado, do profano e das vivências no mundo de hoje. É interessante ir de encontro a essa leitura completamente fora da caixinha do catolicismo e do celibato. Waller-Bridge é cirúrgica ao nunca menosprezar seus personagens ou vesti-los com estereótipos.
O Padre sexy é um ornamento a esse pensamento mais millennial da falta de religião ou mesmo de um questionamento de nossa fé. Isso adicionado ao tato feminino cria uma aura quase mística no entorno do personagem de Andrew Scott. O ator encontra o tom perfeito que desfila entre o sóbrio religioso e o boêmio da vida noturna. É um pecado o Emmy ter esquecido a indicação de Scott ao prêmio de Ator Coadjuvante.
Outro fator que enriquece ainda mais Fleabag é a constante quebra da 4ª parede ser transmutada num truque de roteiro. O seriado foge do comum e usa dos momentos de ‘confissão’ da protagonista como algo palpável de sua personalidade. Por isso o choque quando a mulher é questionada pelo Padre sobre o assunto. Depois de 33 anos (o simbolismo disso) vivendo e confabulando seu sarcasmo sem ninguém ao redor notar, a mulher se enxerga desprotegida perante a perspicácia dele. Ela finalmente foi vista, verdadeiramente vista.
A raposa, o busto feminino dourado e o restaurante temático de porquinhos-da-índia. Os nomes parecidos e a falta de outros nomes. O recital de fagote. Fleabag é quase um conto antigo, místico, a série narra uma história desprendida do mundo material. Por isso os últimos momentos do sexto episódio significam tanto; a protagonista tem que viver, superar seus traumas ou, ao menos, não revivê-los constantemente. E tudo isso sozinha.
A alma da segunda temporada de Fleabag é a de um produto que não veremos novamente tão cedo. Phoebe Waller-Bridge tem mais histórias a contar e esta já chegou a uma dolorosa (mas necessária) conclusão. Não devemos, nem podemos, esquecer dos maus momentos, eles nos moldam tanto quanto os bons.
This is a love story.