Vitor Evangelista
Era uma vez um diretor consagrado e com promessa de aposentadoria. Em seu nono filme, esse mesmo diretor decide voltar ao fim da década de 60. O auge do movimento hippie e o declínio da Era de Ouro do cinema norte-americano. Quentin Tarantino não brinca em serviço e chega aqui em seu trabalho mais otimista, quase um sonho distante, de alguém que é apaixonado pela arte que produz.
Era Uma Vez em… Hollywood (isso mesmo, com as reticências) acompanha o duo DiCaprio e Pitt se aventurando pela América do século passado ao passo que a ascensão do culto de Charles Manson toma forma. Enquanto a dupla confabula tramoias em produções western, a angelical Sharon Tate (Margot Robbie) brilha nos cinemas e vive um período doce de sua carreira.
Leonardo DiCaprio é Rick Dalton, um ator de TV que tenta guiar sua carreira nas telonas ao lado de Brad Pitt, seu fiel escudeiro e dublê, Cliff Booth. Ao passo que Dalton figura uma enorme metalinguagem, sempre em sets de filmagem, cercado de câmeras e luzes de estúdio, o personagem de Brad Pitt pinta a exata desconstrução disso tudo.
A certo momento de suas quases três horas de duração, Hollywood fala com todas as letras: atores mentem. Cliff Booth é dublê, ele conta a verdade, ainda bem. Quentin Tarantino opta por maquiar seu nono filme como um conto sobre segundas chances, sobre mostrar sua segunda pele. E o diretor escolhe seu título (e seu cenário) quase que como uma leve indagação. Afinal, que outro lugar e época poderia representar a inocência e o estrelato do que uma Hollywood de 1969?
E é aí que mora a grande dualidade do filme. O roteiro nivela tanto o otimismo e a aura imaculada de Sharon Tate (e do cinema estadunidense, num geral) com os monstruosos assassinatos da família Manson. O culto guiado por Charles Manson (Damon Herriman) come pelas bordas até tomar a rédea da narrativa e fabricar uma tensão digna do impiedoso ato final dos Oito Odiados (2015) ou do clímax sanguinolento de Django Livre (2012).
Era Uma Vez em… Hollywood não se preocupa em acelerar sua narrativa ou mostrar suas cartas logo de cara. É um filme paciente, por vezes até desritmado. Tarantino passa boa parte do tempo focando em seu protagonista Rick Dalton. Leonardo DiCaprio consegue extrair o máximo do trauma do personagem, muitas cenas carregadas de uma dor interna, íntima. DiCaprio cria uma dinâmica interessantíssima com a pequena Trudi (Julia Butters, ótima revelação), uma atriz mirim que o acompanha nos sets.
É DiCaprio, também, quem abre a porta para o extenso elenco de apoio brilhar. Mesmo com pequenas participações e personagem periféricos, Tarantino entrega momentos ímpares para cada ator e atriz que compõe sua extensa trupe. Kurt Russell, Timothy Olyphant, Luke Perry (seu último trabalho), Lorenza Izzo, Al Pacino, todos ótimos.
Se o marketing de Hollywood vendeu o Dalton de DiCaprio como seu protagonista, fez muito errado. Pois quem aqui recebe todo o ouro é o magnífico Brad Pitt. Parceiro do diretor em Bastardos Inglórios (2009, até agora o melhor filme de Tarantino), Pitt consegue desenvolver uma persona inquieta e até efervescente para seu dublê Cliff Booth.
O filme também entrega as melhores situações para esse personagem. Quentin Tarantino consegue manufaturar sentimentos extremamente conflitantes numa mesma cena. A longa sequência do Rancho Spahn vai variando de uma simples investida cômica até chegar num suspense de roer as unhas.
Essa porção do filme dedicada a família Manson, a George (Bruce Dern está fantástico) e a brilhante performance de Dakota Fanning só reafirma o hábil tato do diretor em subverter a expectativa de sua audiência. E fazer isso com simples viradas no texto, também escrito por ele.
Mas, sabendo da índole de Tarantino, as polêmicas são esperadas. O diretor não hesita em explodir sua tela com o fetichismo por pés (aqui, encardidos) e a sexualização extrema de todas as mulheres que filma. Seja os suaves planos que acompanham a cintura de Margot Robbie rondando a ensolarada Los Angeles, ou as curvas descobertas de Pussycat (outra grande revelação, Margaret Qualley), indo até a maneira vulgar e desconfortável que ele registra as hippies do Rancho.
A coisa pegou mesmo quando Tarantino resolveu estereotipar Bruce Lee (Mike Moh, que de nada tem culpa). A representação do ator beira o ridículo, a voz grunhindo, a personalidade espevitada. É claro que um diretor tem o total direito de recriar seus personagens a maneira que bem entender. Ainda mais nesse Hollywood, um claro conto de fadas americano. Mas, retratar Lee, que sempre buscou fugir dos clichês de sua nacionalidade, como um lutador burro e esquentado, pega muito, mas muito mal. É claro, também, que o diretor desconversou tudo e até rebateu declarações da filha de Bruce, Shannon Lee.
Em maio, no Festival de Cannes, após a exibição do longa, Tarantino se irritou com uma jornalista que questionou a pequena quantidade de falas de Margot Robbie em comparativo com seus colegas de elenco do sexo masculino. Outra bola fora, o diretor optou por retratar o cineasta Roman Polanski (Rafal Zawierucha), marido de Tate na época, sem tocar nas polêmicas envolvendo abuso sexual, que o expulsaram da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.
Quanto a problemática de Margot Robbie e sua Sharon Tate, há caminhos explicativos da decisão criativa de Tarantino. Logo de cara é visível que a atriz representa muito mais um sentimento do que uma pessoa. A delicadeza ao tratar da figura de Tate deveria ser muita aqui. Em 2019, seu assassinato pela família Manson completou 50 anos. A mulher estava grávida quando membros do culto invadiram sua residência e a mataram.
Quentin Tarantino filma sua estrela de perto para longe, quase que suspirando frente a tamanha beleza, tamanha pureza e, o ponto principal aqui, tamanha inocência que foi perdida na fatídica noite de 9 de agosto. Margot Robbie encontra uma acústica quase divina para homenagear sua personagem.
Mais que uma atuação, o trabalho da australiana é um ato de respeito à memória da falecida atriz. Não à toa a irmã de Tate, Debra, adorou a representação que o diretor fez. E, concluindo sua linha de pensamento, Tarantino encontra o desfecho ideal para a personagem, seus sonhos e motivações. Essa escolha também remonta ao título do filme, essa incansável busca por essa terra de sonhos e pureza. E, pelo menos na de Tarantino, Sharon Tate vai de encontro a tudo isso.
Quentin Tarantino construiu sua carreira sob dois grandes alicerces: um roteiro ácido, usualmente verborrágico e extremamente rico em detalhes e um notório banho de sangue. E, talvez chegando na maturidade de sua carreira cinematográfica, ele abre mão (em parte, claro) desses dois chamarizes e vai desconstruindo sua própria linha de trabalho.
Era Uma Vez em… Hollywood conta com o texto menos espirituoso de Tarantino. Já chegando no fim da carreira, o diretor cria menos linhas truncadas de diálogo e deixa seus personagens respirarem em cena. Isso pode até dar a impressão do filme ser montado sem uma linha narrativa contínua. Essa decisão também auxilia na imprevisibilidade de seus atos, cada um podendo ser emancipado do anterior.
E a violência é muito mais emocional do que física. A lavagem cerebral que Manson realiza nas jovens, o iminente futuro de Sharon Tate, tudo isso dói tanto (até mais) que um lança-chamas ou mordidas de cadelas. Dito isso, o filme ainda reserva uma fartura de sangue, gritos e confusão generalizada. Mas o diretor demonstra que sua violência escancarada em 2019 não é a mesma que fez sucesso em Cães de Aluguel de 92 ou Pulp Fiction de 94.
O quebra-pau, mesmo que arranque gargalhadas de quem está nas salas de cinema, responde a propostas muito mais sérias que cômicas. É o ato final de provação para Cliff, é a catarse de ver os vilões sendo digladiados, é a sensação de que, novamente, na terra de Tarantino, a casa ao lado amanhece intocada.