Luigi da Fonseca Rigoni
O novo filme de Paul Verhoeven, Elle, conta a história de uma mulher que teve sua rotina quebrada pelo ataque de um desconhecido dentro de sua própria casa. O evento, que já parecia ser traumático o suficiente, torna-se ainda pior: o agressor misterioso ainda não desistiu. O longa-metragem transita entre os gêneros suspense e drama, envolvendo o espectador em uma atmosfera pesada, na qual as ações dos personagens, em especial as da protagonista, traçam perfis psicológicos muito mais complexos e problemáticos do que se espera inicialmente.
Elle não é um filme sobre o trauma do estupro. O terrível evento em questão funciona apenas como plano de fundo para o desenrolar de uma narrativa muito mais profunda, na qual dramas subjetivos de cunho psicológico são destrinchados sutilmente ao longo do filme. A forma como os personagens interagem com seus sentimentos e estabelecem relações entre si são o ponto forte da narrativa, que se desenvolve ao longo de 130 minutos.
Paul Verhoeven ficou conhecido por produzir filmes com alto teor de violência e conteúdo erótico. Entre as obras mais conhecidas do diretor estão Robocop (1987), Starship Troppers (1997) e Showgirls (1995), que recebeu o Prêmio Framboesa de Ouro, título dado ao pior filme do ano. Ao ser questionado sobre o “prêmio”, Paul disse que era uma crítica construtiva e que devia ser levada em consideração. Hoje, com uma carreira já consolidada, Paul Verhoeven colhe os frutos de seu trabalho. Elle foi considerado uma de suas obras primas, sendo ovacionada pela crítica no festival de Cannes.
Entretanto, o sucesso do filme não é um mérito exclusivo do diretor. A atriz francesa Isabelle Huppert interpreta Michelle, a protagonista do longa. Sua excepcional atuação garante a carga dramática necessária ao filme, no qual a aparente frieza da personagem fica evidente por meio da atuação da atriz. Isabelle ainda garante de forma brilhante que sua personagem transmita a imagem de uma mulher sarcástica e calculista, fato esse que a tornou uma forte candidata à Palma de Ouro.
O longa começa de forma chocante: gritos agonizantes recebem o espectador, que se depara logo nos primeiros instantes com uma cena de estupro. Um evento traumático como esse deixaria marcas profundas na vida da protagonista; entretanto, Michelle reage de forma inesperada e retoma sua rotina por completo, como se nada tivesse acontecido. O ataque, que acontece em sua própria casa, é mantido em segredo por ela, que não comunica a polícia e parece estar alheia ao acontecimento, preocupando-se mais com seu trabalho do que com o ocorrido.
Embora a personagem busque manter-se o mais distante o possível à situação terrível ao qual foi submetida, o responsável pelo estupro não a deixa em paz. Portas arrombadas e mensagens de texto são algumas das formas de intimidação usadas pelo criminoso, o que a leva a tomar medidas drásticas a respeito da situação. A empresária decide investigar por conta própria o caso, tendo como ponto de partida seus próprios funcionários. Entretanto, o foco narrativo da obra não é o desenrolar de uma investigação. Elle não é um filme tipicamente policial, embora o suspense e a tensão característicos do gênero estejam presentes.
A relação que Michelle estabelece com seu emprego também é um ponto importante da obra. Ela dirige com mãos de ferro uma empresa de criação de videogames, um território predominantemente masculino e jovem, no qual os produtos desenvolvidos são baseados na violência, sendo esse um dos pontos intrigantes do filme. Os videogames desenvolvidos pela empresa funcionam como um espelho no qual Michelle projeta seus traumas, que ao longo das duas horas de filme serão destrinchados. Entre os eventos traumáticos de sua vida, pode-se destacar a péssima relação que a empresária mantém com a família, em especial o pai, preso há vários anos por cometer uma chacina.
Outro aspecto importante é o tratamento da questão moral, dissecando as estruturas interpessoais contemporâneas. Na obra, o sexo, trabalho e a família estão diretamente relacionados à violência, levantando debates sobre como as relações estão sendo pautadas na atualidade. As atitudes de Michelle, sendo vistas de fora, podem chocar alguns espectadores, já que os ideias de moralidade são colocados em segundo plano pela personagem. Manter relações sexuais com o marido da amiga, subornar os funcionários, manipular o filho e chantagear a mãe não são as atitudes mais bem vistas pela sociedade, porém, são as tomadas pela protagonista, que, além disso, ainda desenvolve certa atração por seu abusador, sendo esse o ponto mais polêmico aqui.
Elle é um filme denso, que vai muito além do esperado. A construção da personagem principal é excelente, sendo esse o grande trunfo do filme e que faz valer a pena assistir ao longa. O desenvolvimento psicológico de Michelle, com seus traumas e desejos, torna a película uma intrigante experiência, nos fazendo refletir sobre os anseios humanos e suas causas. A protagonista não é um personagem maniqueísta como costumamos ver nas grandes produções da indústria; mas sim, uma pessoa normal, com seus erros e acertos, sendo esses os responsáveis por mostrar ao espectador que ela, apesar de tudo, é apenas mais um indivíduo como outro qualquer.
*Texto realizado por Luigi Ringoni para a disciplina de Filosofia, da graduação em Jornalismo da UNESP.