Gabriel Mascaro junta os cacos de um Nordeste que já passou e o transforma em um novo mosaico brasileiro
O quase continente chamado Brasil é objeto fílmico de toda a sorte. Sorte, nesse sentido, cai lhe bem, já que a quantidade de produções nacionais que tenta recriá-lo através dos vários estilhaços que lhe compõem às vezes consegue retratá-lo fielmente; porém, é grande a frequência de projetos que distorcem a realidade e, quando não, mentem para o espectador, seja por interesses econômicos ou por padronização estética do mercado.
Analisando o ano de 2015, dos 100 filmes com maior bilheteria, 13 são nacionais. Figuram nessa lista nomes como Loucas para Casar, S.O.S Mulheres ao Mar 2 e Até que a Sorte nos Separe 3. Retirando o foco da qualidade duvidosa dessas projetos, não é preciso muita análise para perceber que elas formam uma massa homogênea do cinema comercial brasileiro que retrata o povo estrita e comicamente como uma classe rica, pasteurizada e que maquia suas matrizes de cor, classe e cultura.
Pois bem. Eis que em 2015 o diretor Mascaro volta a dar as cartas de sua visão de Brasil. Após dirigir o poético e contemplativo Ventos de Agosto (indicado ao prêmio Netflix como representante do cinema brasileiro), Mascarro traz agora em Boi Neon um Brasil tão moderno que ainda nem é conhecido por nós.
Nascido em Recife, o diretor tem pleno conhecimento dos detalhes culturais do Nordeste brasileiro. Porém não será da conhecida cultura pernambucana que o filme irá se sustentar, mas a partir de uma cultura em construção, renovada e mais criativa, sem deixar a aridez passar.
O Nordeste telúrico permitiu a criação de vários personagens fictícios que, enraizados em seus solos secos, não usam lá de muitas palavras para se expressarem. Trata-se de uma aclimatização antiga, como o personagem Sebastião de Vidas Secas e, por que não, o nordestino símbolo de “Lamento Sertanejo” composto por Gilberto Gil.
Eu quase não falo
Eu quase não sei de nada
Sou como rês desgarrada
Nessa multidão boiada caminhando a esmo.
Aqui, a esmo, temos Iremar, o protagonista de Boi Neon. Porém, assim como o Nordeste, modificou-se com o passar dos anos e a relativa prosperidade do Brasil nessa região esquecida por muito tempo. Porém, suas raízes ainda são secas; o personagem pode até ser um peão, meio “bronco” e não ter muitos amigos, mas possui um quê universal, algo que apela além do ser humano, mas que também não sai do plano animal. Iremar tem um desejo: ser estilista e trabalhar na indústria têxtil, um dos símbolos que mostra um nordeste revitalizado e reconhecido mundo afora para além de seus percalços. Mas deseja pelas arestas, escondendo seus sonhos embaixo de um comboio em que bois são carregados para as vaquejadas, as raves do agronegócio nordestino.
Parece que Boi Neon contrasta essas duas esferas opostas – o desejo e o real – a todo momento. Os planos vão se alterando, um em contraposição ao outro, mas, ao mesmo tempo, como num rito meio taoista, eles completam. Há horas em que as tradicionais barracas de cachorro-quente em festas nordestinas são focadas, ao ponto em que ambulantes vendem calcinhas em beiras de estradas. Há um único objetivo em mostrar o que é o Nordeste aos olhos de um nordestino. Em outros momentos, é mostrado um quase futuro que não conhecemos: um peão designer de roupas femininas, que se preocupa com a estética de sua assinatura, que ensina em vez de ser ensinado.
Seu sonho legítimo tanto lhe traz mudança como proporciona romper associações que são frequentemente feitas não só a ele, mas em toda uma camada de brasileiros. Como parceira nessa destruição, Iremar é acompanhado de Galega, que nada menos é a mecânica do comboio velho de bois que eles dirigem. Não obstante, o trabalho desempenhado por esses personagens não define suas respectivas orientações sexuais ou lhe afetam de alguma outra forma. Isso quer dizer que pode o peão continuar a ser heterossexual ao ponto em que costura mini saias para suas amigas.
Todos essas belas e aparentes contradições também são expressas nas técnicas cinematográficas empregadas em Boi Neon. O filme conversa com o que há de mais moderno no cinema contemporâneo: grande apelo à cores vivas, planos longos e cenas hiper-realistas. Obviamente, como bom brasileiro, esses estilos importados foram adaptados e somados, como reiterado anteriormente, a tipicidade brasileira nordestina (Mastruz com Leite que o diga). Essa mescla de elementos que, ao primeiro olhar, pode ser classificada pejorativamente como brega, é elevada a um alto padrão estético no longa-metragem – que, inclusive, foi premiado no cobiçado Especial do Júri no festival de Veneza em 2015.
Com Boi Neon, o mundo agora pode ver o sonho de um boi brasileiro que conheceu a rave nordestina e sonha com ela quando volta ao comboio. Talvez essa seja a forma que Gabriel Mascaro vê sua realidade, suas raízes e sua particularidade como brasileiro. Seu caleidoscópio é muito rico, heterogêneo e representativo, pois não só se aproxima dos sonhos escondidos dos brasileiros, mas também os projeta para o futuro.