Os Últimos Dias de Laura Palmer: uma outra Twin Peaks

O filme foi mal recebido em 1992, mas hoje recebe uma nova apreciação. Diferente o bastante da série para incomodar alguns fãs, David Lynch apresenta uma outra perspectiva do universo Twin Peaks.

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Lucas Marques

O longa-metragem Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer, de 1992, era, até este ano, o último vislumbre do universo da série de David Lynch e Mark Frost. Um último gole nada fácil de digerir: Lynch frustra a espera por respostas aos questionamentos deixados em 1991, situando o filme antes da narrativa da série. A obra possui uma estranha relação interna, pois tanto depende que o expectador conheça o material de origem, quanto pede que nós o tratemos como um produto único, quase que desvinculado do seriado. David Lynch, ao quebrar expectativas, reafirma a posição de autor na época mais popular de sua carreira.

Hoje soa como exagero o filme ser vaiado em Cannes e malhado pela crítica da época, mas não é como se Lynch não estivesse provocando: Laura Palmer, a protagonista, só aparece depois de 30 minutos de exibição. Antes disso, a espécie de prólogo mostra agentes da FBI investigando um caso que futuramente se ligaria ao assassinato de Laura. Mas, em vez de tomar a perspectiva da personagem mais carismática da série, o agente especial Dale Cooper (interpretado por Kyle MacLachlan), o longa insere dois novos personagens: uma dupla de investigador e legista, representados por Chris Isaac e Kieth Sunderland.

O duo é tão charmoso quanto as melhores criações de Lynch. A mescla pós-moderna de gêneros que marca Twin Peaks está na própria essência das personagens: Isaac é o agente experiente, bonito, de tiro curto e direto; Sunderland faz o papel do calouro inexperiente, um nerd com tendência a criar constrangimentos. É o modus operandi do diretor utilizar desses clichês que remontam a gêneros populares do cinema, exibindo-os com ironia e orgulho. O resultado, como na maioria das vezes, é inesperado, divertido e estranho. Além de MacLachlan, o próprio Lynch retorna com seu agente Gordon Cole – retirado diretamente da comédia-pastelão – e David Bowie faz uma participação curta, mas marcante.

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David Lynch, o agente de FBI mais paspalhão que você conhece!

O prólogo tem pouca ligação com o restante do longa, até porque nenhuma personagem volta à trama, ao menos viva. Mas os primeiros minutos fundamentam alguns elementos recorrentes do filme. O primeiro diz repeito aos cenários, quase todos pouco ou não explorados na série. Da central do FBI ao colégio de Twin Peaks, esses ambientes, que antes estavam apenas nos diálogos, se materializam com a força do cinema: filmados em película, mais ricos em cores e escopo do que na TV, eles adquirem um caráter mitológico.

O outro elemento comum do filme está relacionado aos símbolos, empregados pelo diretor não só nesse universo, mas sistematicamente em toda filmografia. Não é de se espantar que Lynch, um cineasta psicoanalista, tenha sua própria gramática de imagens, complicada, mas prazerosa de ser estudada. A eletricidade, que está já nos créditos iniciais de Os Últimos Dias de Laura Palmer, é um elemento ligado a iminência da morte. O fogo – o título original do filme é “Fire Walk with Me” – representa que o mal, como entidade, está presente.

Os Últimos dias de Laura Palmer é uma das obras que mais possuem imagens dos dois elementos. Consequentemente, é um dos mais dolorosos e medonhos do diretor, talvez só equiparável nesses aspectos a seu último filme, Império dos Sonhos, de 2006. Junto com Veludo Azul, de 1986, e Coração Selvagem, de 1990, o longa está situado na fase em que Lynch tem como missão abordar temas polêmicos da psicanálise: a família, o sexo (os abusos sexais, principalmente) e o incesto.

A trilha sonora de Angelo Badalamenti para o filme possui reimaginações dos temas da série, além de músicas originais

Se nos outros filmes citados, apesar de toda a maldade, existe esperança no final, Os Últimos Dias de Laura Palmer carrega, já no título, a tragédia irreversível. O que resta é o processo de deterioramento de Laura, um ciclo de pressão social, vício em cocaína e abusos já em estado tardio. Na série Laura é uma espécie de MacGuffin – ela só existe porque o enredo dedica-se ao mistério de seu assassino -, o filme, diferentemente, humaniza a personagem. A realidade de Laura, magistralmente interpretada por Sheryl Lee, reverbera toda a produção; melancólica, estridente nos momentos de pânico, a obra de Lynch que mais se encaixa ao gênero terror.

O horror aparece em uma perspectiva do mal diferente da série: nas duas temporadas, a obscuridade, representada pela personagem Bob, aparenta ser uma entidade independente, que se apodera do indivíduo. Já no filme Leland (Ray Wise), pai da Laura, é responsável pelos abusos. A entidade do mal é menos uma possessão do que uma manifestação da subjetividade. O extraordinário da série é abdicado em favor do terror do cotidiano, amplificado pelo expressionismo de Lynch.

Os Últimos Dias de Laura Palmer não merece as vaias de Cannes, mas tampouco merece ser chamado de uma “obra-prima perdida” – como a apreciação com distância possibilitou aos críticos atuais -, apesar de ser sim um filme subestimado. Algumas das cenas mais poderosas esteticamente – como a cena do prostíbulo ou do engarrafamento – de Lynch estão no longa. Entretanto, a relação de dependência com o seriado cai às vezes em uma armadilha conceitual: a começar pela troca da atriz da personagem Donna, de Lara Flyn Boyle para Moira Kelly, o filme pede a toda hora que você se lembre de alguns elementos e descarte outros. Ao final, fica difícil analisar a obra por si só, assim como situá-la ao lado do produto televisivo. A própria existência do filme é estranha, não que seja algo ruim. Jogar com Lynch é complicado, até quando parece fácil. Mas a experiência é sempre recompensadora.

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