Leonardo Santana
Qualquer fã de cinema começaria esse texto afirmando que Alfonso Cuarón dispensa apresentações. Mas sabemos que isso não é verdade. No caso do leitor ou leitora que eventualmente não conheça o trabalho do diretor mexicano, temos aqui a oportunidade. Roma é o cartão de visitas perfeito para um artista brilhante.
Conhecemos Cleo. Descendente de indígenas, a jovem trabalha como empregada doméstica na casa de uma família de classe média mexicana. Além de limpar e cozinhar, ela também cuida dos quatro filhos do casal. E gosta de ir ao cinema nas horas vagas. A protagonista vem de um lugar bastante íntimo, já que Cuarón se inspirou em Liboria Rodríguez, a babá que o educou, para escrever a personagem.
Mas Libo (como ela foi apelidada) não é o único elemento auto biográfico de Roma. O longa é homônimo ao bairro nobre em que o cineasta cresceu, localizado na Cidade do México, onde também a maior parte do roteiro se desenrola. A escolha do ano de 1971 para a ambientação da trama não se dá à toa, uma vez que o contexto político de Cleo é de profunda instabilidade.
O momento histórico não é, porém, o grande destaque do roteiro (que também é assinado por Cuarón). Isso porque o cineasta optou pela ótica da família e de Cleo para remontar o cenário de sua infância. “Eu era uma criança mexicana branca e de classe média, vivendo nessa bolha”, ele contou à revista Variety. Logo, o contexto político em que ele estava inserido não poderia se sobrepor ao universo pessoal da família.
Esse é, inclusive, um dos grandes trunfos de Roma. E o mesmo não seria possível não fosse sua direção estática e pouco ostensiva. Passando longe dos malabarismos de Gravidade (2013), Alfonso limita a câmera a giros em seu próprio eixo e movimentos em linha reta. Dessa forma, ele estabelece um olhar que apenas observa e não julga.
A direção sóbria abre espaço para a percepção de algumas sutilezas do cotidiano da casa, como as disparidades entre empregados e patrões. É sutil e orgânica também a forma com que as personagens reagem ás ações uns dos outros. Isso se dá porque, durante as gravações, Cuarón não liberou o roteiro completo a seus atores. Ao invés disso, lhes enviava apenas as suas respectivas falas a serem gravadas em cada dia.
Dessa forma, a resposta de cada ator ao destino de seu personagem e de seus colegas era orgânica e imediata. O método soou natural para Yalitza Aparicio, a atriz principal do longa. Estreante no ofício, ela tem descendência mixteca e estava se formando professora quando foi escalada para protagonizar Roma.
A inexperiência na interpretação pode ter sido essencial para o produto final, já que Cleo nos guia silenciosamente em sua história, reflexo de sua personalidade protetora e nada expansiva. Qualquer atuação mais elaborada soaria afetada. A simplicidade de Yalitza é essencial na magia do longa.
E o resultado é soberbo. Cleo, por si só, já renderia um comentário social completo sobre desníveis de classe, solidão e racismo. Mas o que temos aqui é uma família dissecada e exposta em suas maiores turbulências. É um retrato que vem de um universo tão particular que as vezes é desconfortável de ver.
Roma é um filme difícil e com razão de ser. Mais visceral do que nunca, Alfonso Cuarón homenageia sua heroína de infância mas não deixa escapar o cinismo e o gosto amargo do mundo dos adultos. A sacada é mais que bem vinda, uma vez que, na tentativa de recontar histórias do passado, a dor da realidade não poderia ficar de fora.