A força da exposição em Felizes Juntos

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Após 20 anos, rever o filme de Won Kar-Wai é, ainda, sobre estar em busca de algo distante. Mesmo estando junto, a busca de Fai no filme é um tratado da solidão e da incompatibilidade que poucos hoje compreenderão. 

Adriano Arrigo

No começo, era tudo sobre as Cataratas do Iguaçu. Fai (Tony Chiu-Wai Leung) sai de Pequim e viaja de algum ponto do mapa até Argentina. “Ele disse que devíamos recomeçar”, ouvimos de Fai através de uma voz que soa como se fossem seus pensamentos ou memória. E é isso que o início de Felizes Juntos (1997) desenha, a memória de algo que um dia foi, mas hoje precisa se reconstruir.

Desprovido de cor, ele, pelo menos, paira em plano correto. As estradas que eles percorrem poderiam ser percorridas em qualquer lugar de mundo, especialmente brasileiras. No nível do mar, transitam dois seres perdidos duelando com caminhões em alta velocidade, que quase levam seus planos embora. É um sinal que recomeçar será um caminho complicado, com forças contrárias.

estrada em felizes juntos

Sobretudo, é sobre forças que Felizes Juntos trata. E por bem e por mal, Fai experiencia todas elas. Sua intensidade é mostrada tanta na cena inicial de sexo cru quando na icônica cena das Cataratas do Iguaçu: “Juran que el mismo cielo“, canta Caetano Veloso em sua interpretação da canção mexicana “Cucurrucucú Paloma”, ao ponto que a câmera sai de seu centro de turbilhão para o macro das águas de Iguaraçu. Como o caminhão da estrada, é o sinal – agora em cores – de uma força indômita que Kar-Wai pinta nesse canto do mundo.

E é exatamente a força das Cataratas que acenam o relacionamento entre Fai e Ho Po-wing (Leslie Cheung), seu namorado.  Provavelmente será tempestuoso e, seguindo os parâmetros da voz de Caetano, bastante sofrido também. É um enredo adaptado exatamente para metade final dos 90, sem facilidades tecnologias, sem fáceis aproximações. Não à toa, os personagens estarão pendurados em telefone o tempo todo. Mas, de qualquer forma, é de se perceber que a força dessa cena (e do filme como um todo) não desbotou nem um frame nesses vinte anos.

O mais interessante é perceber que, a instabilidade emocional entre Fai e seu namorado é o que move o filme ainda hoje; estabilidade essa que a cada dia parece estar mais longe de encontrar. Embora as pautas LGBTQ+ tenham sido atingidas de alguma forma e ainda não tenhamos alcançado uma sociedade que Kar-Wai idealizou – essa em que o amor é universal – o romance do protagonista, após duas décadas, continua na subterraneidade.

mundo ao contrário felizes juntos

Sob a concepção de Fai, há uma grande ligação entre o amor gay e seu deslocamento no mundo. A Argentina é para ele o novo país que gira no sentido e posição correta, enquanto Pequim está de ponta-cabeça. É o símbolo de uma vida bagunçada em relação a uma perspectiva tradicional.

O vertiginoso mundo chinês lhe impulsionou – aqui está mais uma força – para buscar ser o que ele é. E não é falado necessariamente aqui de “sair do armário”; Kar-Wai é delicado demais para isso. Em Felizes Juntos, todos estamos dentro do armário esperando ser descobertos, e às, vezes, chutando-o para ser ouvido.

Porque escolher sair é pagar um preço alto. A correção do fuso horário de Fai é a sincronização que ele é obrigado a fazer, para se adequar a um mundo que não sabe bem se escolheu ou lhe foi empurrado – como quando vai trabalhar em um matadouro, lugar sujo, viciado de morte. Mas, pelo menos, o fuso horário entre eles é síncrono. Fai está o tempo todo tentando fazer a “coisa certa” em lugares errados.

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Já seu namorado escolhe um caminho mais fácil que não pode ser, de alguma forma, questionado. Se prostituindo com lixos brancos, como Fai diz, Po-wing tentou esquecer o companheiro através de vultos que nada tem de si, que não lhe compreendem, não falam sua língua e que, no máximo, podem lhe oferecer cigarros.

Mas a oferta de afeto para esses seres desgarrados, por mais pequena que seja, é sempre uma grande demonstração de amor. E o amor está, sim, em todos as cenas de Felizes Juntos, embora Fai chore e seu parceiro tenha uma personalidade que não cabe no quarto de sua pensão.

O amor está no frasco de inseticida que Fai usa para matar as pulgas do colchão de Po-wing, na toalha molhada usada para dar banho em seu namorado e ainda na comida gosmenta que prepara doente quando, desumanamente, Po-wing lhe pede. É um amor que poucos experienciaram. E aqui tratamos especificamente de relações homoeróticas que, por si só, já andam nas beiras da sociedade.

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Parece que esses são os elementos para justificar o dessentimento das personagens. Como se as brigas, as humilhações e acessos de raiva fossem completamente adequadas. E realmente são, pelo menos para Kar-Wai. O chinês não tende a maquiar o que em outras mãos seriam sintomas de mal-estar. Em Felizes Juntos, o desamor é filosofia chinesa: “o um contém o todo”. Se formos tirar toda a dor de Fai, o que restaria do seu amor por Po-wing?

O único jeito possível para Fai é a resignação, é aceitar que Po-wing é o que é. Mas isso não o faz ficar submisso a esse sistema. É então que Chang (Chen Chang), uma clássica personagem de Kai-Wai – tal qual Faye em Amores Expressos – aparece.

Tratam-se de personagens idiossincráticas e extremamente dóceis. Chang tem o poder de ouvir muito bem e, por isso, não aprecia fotografias já que essas podem mentir sobre o humor das pessoas.Para levar Fai consigo até a Tierra del Fogo, Chang lhe pede uma gravação. É a oportunidade que Fai encontra para pedir socorro silenciosamente através de um choro consigo.

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Chung (a esquerda) é um típico personagem de Kai-Wai: idiossincrático e extremamente dócil

É um enigma entender a força de Chang. Ao mesmo tempo que cede ao personagem principal sentimentos que Po-wing não oferecera, não pode ser mais do que isso: um grande amigo. E nesse ponto, Felizes Juntos passa o sentimento intrínseco dos que só podem amar pelas beiras terem tendência a se sentirem próximos demais por outras pessoas que lhe compreendam de alguma forma.

E não só isso, a busca de completar-se – assim com Po-wing fazia com os “lixos brancos” – faz com que Fai apele para os banheiros públicos e cinemas pornôs. Mais uma vez, Kar-wai acerta em pintar encardidamente a contradição da condição homossexual. Fai sobrevivendo com o que tem, pois lhe é cômodo, são as migalhas que lhe são postas por não poder (e não saber) quem se pode amar. As ruelas de Bueno Aires, por mais que estejam preenchidas por gays, lexigem estes a correr pelos cantos para poderem sentir alguma coisa, como o coração de Fai – que provavelmente Chang ouviu bater em sua despedida.

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Nunca saberemos se Chang ouviu o coração de Fai bater

Mas Kar-Wai recompensa a condição de todos esses jovens pintando uma Argentina que embora suja, é colorida ao menos ficcionalmente. Sua paleta é de uma eferverscência que sabemos que está ali, mas pelo peso da dor de ser real, é meio desbotada, fria. Então, não é de se admirar que a cada frame de Felizes Juntos temos uma história diferente reclamando através não somente das cores, mas sobre a composição das cenas, das escolhas que ambos usam e como tudo isso é encaixotado sob as lentes de Kar Wai.

Como os trincos de porta que insistem em não fechar (e outros fragmentos do cotidiano) são o rico material que Kar-Wai usa para representar, de forma legítima, um amor disfuncional tão específico e não datado. Ainda mais se fomos analisar as produções que tiveram temática nos anos ao redor daquele. Como em Beautiful Thing (1996), uma lástima de retrato de adolescentes, com direito a cenas beirando o ridículo.

Exceções para a época, porém, existem. Em Banquete de Casamento (1993) o conterrâneo de Kar-Wai, Ang Lee, fizera (pasmem) uma comédia que desponta além de clichês prontos de homossexuais. Não à toa, Lee voltaria em 2005 com o simbolista Brokeback Mountain (2005), filme que dispensa apresentações.

E Felizes Juntos não é só um ponto fora da curva na lista de filmes como auge nesse tema, mas também se tornou referência no gênero. O diretor americano Berry Jenkins trata de assuntos muito parecidos, com as mesmas cores, enquadramentos, no simbolismo da água e até na trilha sonora em seu longa Moonlight.

Trata-se de uma legítima inspiração vinda do cinema chinês adaptado a um subúrbio negro. Está ali, os restaurantes, os telefonemas, as camisas quadriculadas, até a cena do Tango na cozinha coletiva entre Fai e Po-wing que em Moonlight foi alterada pela primeira experiência de Kevin na beira do mar.

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Moonlight, de Barry Jenkings (Crédito: Reprodução)

A experiência da Felizes Juntos, então, se mostra deslocada de um país ou dentro de qualquer enquadramento que se possa dar. Há, porém, somente a necessidade da compreensão dos solitários – e está só pode ser feita por seres dentro dessa mesma circunferência. Chang diz que nada entende da gravação de Fai quando a liberta na Terra do fogo. Resta, então, Fai procurar em outros lugares e coisas, mesmo naquelas que não são compatíveis. Afinal, só estamos a mercê das forças, naturais ou não.


Exceto pela a imagem de Moonlight, o crédito de todas as imagens desse texto são do site Screenmusings.

Um comentário em “A força da exposição em Felizes Juntos”

  1. Revi ontem, pela terceira vezes, esse que para mim é um dos melhores trabalhos de Won Kar-Wai, só superado pelo excelente “Amor à flor da pele”. A critica ao filme está ótima. Parabéns!

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