Elisa Dias
Quarenta anos atrás, David Lynch lançava ao mundo seu primeiro longa-metragem: Eraserhead. Com roteiro de 21 páginas e cinco anos de filmagens, devido a problemas de financiamento, o filme já começa a revelar, mesmo que de maneira não intencional, uma onda de contrastes – que vão desde a oposição entre claro e escuro aos universos do onírico e do real.
De maneira ridiculamente simplificada, a obra nos conta a história de Henry Spencer (Jack Nance) e de como sua vida se torna tumultuada ao engravidar a namorada Mary (Charlotte Stewart). Essa narrativa é o fator de sustentação de toda a obra, que se mostra imprescindivelmente metafórica e simbológica – aspectos consequentes das influências estéticas do diretor.
Claude Beylie, em seu livro As obras primas do cinema, afirma que Eraserhead é o “pesadelo experimental nascido de um cruzamento de Frankenstein com Um cão andaluz”. O que temos aqui é a fusão de características expressionistas e surrealistas, que resultam no tom obscuro e bizarro observado no longa. A divisão entre real e ilusório, por exemplo, é de certa forma indistinguível, pois não há como entender de que maneira essa divisão se daria no universo do filme em questão. Observa-se que a influência da luz e da sombra é essencial para demarcar sensações e pensamentos das personagens, e ainda encontramos, mesmo que de maneira muito sutil, a brincadeira com reflexos, seja em janelas ou poças de água (influência de pintores surrealistas, especialmente René Magritte).
Além dessa profusão de aspectos estéticos, há também a relação com o público. Em todas as entrevistas em que perguntam a Lynch sobre o significado de seus filmes, ele responde com o mesmo argumento: a interpretação que importa é a do público, não faz sentido revelar uma (única e pessoal) visão do que lhes é mostrado. Essa ideia dá liberdade para o espectador que, apoiado na discreta linearidade narrativa já mencionada, vê a possibilidade de entender Eraserhead à sua maneira, ou sentir-se perdido junto com Henry. Ademais, as reações e olhares de espanto, confusão e incredulidade dos atores assemelham-se muito aos de quem acompanha de fora a história, o que resulta num sentimento de identificação não explícita com as personagens.
Ligada à interpretatividade do longa também está uma pesada simbologia. Os significados da moça no radiador, do planeta e seu maquinista, do bebê de Henry e Mary, da sequência da cabeça de borracha entre tantas outras são incertos, contribuindo para a caracterização bizarra e obscura do filme. Muito dessa simbologia se associa ao grotesco, ponto que, de acordo com Tom Gunning, é herança do que ele chama de “cinema de atrações”, vinculado a qualidades circenses, exóticas e ao exibicionismo. A alegorização também aparece como ferramenta metafórica, principalmente nas figuras da vizinha de Henry (Judith Anna Roberts) e da moça do radiador (Laurel Near).
A vizinha, inclusive, é um dos símbolos menos complexos do longa. Ela se relaciona aos aspectos sexuais e carnais de Henry, aparecendo em momentos de afastamento de Mary ou de confusão da personagem principal. O apelo sexual é muito explorado por Lynch no longa, seja de maneira óbvia (a própria vizinha) ou menos aparente (primeiros minutos de filme, frango na mesa de jantar da casa de Mary, etc). Muitas vertentes interpretativas de Eraserhead tomam esse apelo como ponto chave para o entendimento da obra.
Elementos cômicos também são recorrentes em toda a extensão do filme. Ao contrário do que se pode pensar, eles não rompem com o grotesco – muitos deles, aliás, estão vinculados, além de se relacionarem com a sensação de incômodo. Podemos tomar como exemplos claros a porta do elevador em uma das primeiras cenas, que demora demais para se fechar, ou o tocar compulsivo da campainha da empresa de borrachas por Paul (um empregado) para chamar seu chefe. São momentos engraçados, mas que não funcionam como os alívios cômicos recorrentes por exemplo nos blockbusters atuais, pois de maneira alguma quebram a tensão e estranheza propostas.
Lynch serve-se de todas as possibilidades para criar essa gama de símbolos, chegando a recorrer ao âmbito técnico. A estaticidade da câmera nas cenas, por exemplo, quase como se antecipasse o movimento das personagens, cria a impressão de que ela nada mais é do que parte do cenário, prendendo o olhar do público à sua própria visão – quadrada e limitada. Henry sente-se preso, seu quarto é pequeno e apertado, a única extensão do lugar é o interior claustrofóbico do radiador, e a única janela que existe é de frente para um muro. A câmera aqui tem função, além da filmagem em si, de passar o aprisionamento sentido por Henry como sensação real ao espectador.
E assim como a angulação e movimentação de câmeras, os sons foram muito bem pensados pelo diretor. Os ruídos e chiados causam tensão e estranhamento, bem como os silêncios prolongados, e os barulhos do ambiente causam impressões de nojo e horror. Há de se notar também que um dos momentos mais icônicos do filme – a cena em que a moça do radiador se apresenta para Henry – ganha sua carga de significação por meio de uma música (In Heaven, escrita e cantada por Peter Ivers). A canção é tão expressiva que até a banda Pixies fez sua versão.
Eraserhead foi importantíssimo para o estabelecimento das ideias de David Lynch, que seriam desenvolvidas em seus próximos projetos. Apesar de certo caráter experimental, o filme constitui um argumento contrário àqueles que acreditam que o primeiro longa de qualquer diretor pode chegar a ser no máximo mediano. Aliás, a obra é considerada uma das melhores de Lynch, e continua causando o mesmo impacto de quatro décadas atrás.