Eli Vagner F. Rodrigues
Bertrand Russel desmascarou os grandes metafísicos do século XIX como autores de monstruoso embuste aplicado a gerações ansiosas por serem enganadas. A crítica à hipocrisia e à estupidez de um certo espírito vitoriano foi inspiração para a literatura posterior e se inspirava na postura niilista do final do século XIX. Desde então, na literatura como nas artes em geral, se cultivou o valor da contestação ao status quo. De Joyce aos beatniks, de Orwell à Salinger a hipocrisia do discurso é um alvo comum.
Nessa época, década de 20, a retórica e até mesmo a eloquência eram alvo de censura por construírem uma camuflagem para Pecksniffs literários e morais, charlatães inescrupulosos que corrompiam o gosto artístico e desacreditavam a causa da verdade e da razão, e no pior dos casos conduziam um mundo crédulo ao desastre. Quem nos dá esse panorama é Isaiah Berlin. Na crítica à retórica e à eloquência dessa época pairava uma aversão ao que não fosse signo de humildade, integridade, humanidade, consideração escrupulosa pela sensibilidade. Quem estaria, na época, nos antípodas dessa classificação honrosa? Diria nosso candidato à crítico literário: o paladino do imperialismo e da concepção romântica da vida, o militar fanfarrão, o orador e jornalista veemente, a mais pública das personalidades públicas num mundo dedicado ao cultivo das virtudes privadas, o ministro da fazendo do governo conservador, Winston Churchill.
Os críticos de Churchill acusavam-no de reproduzir uma atmosfera dramática, uma saraivada de imperativos, uma fala declamatória e derivada de um enaltecimento do eu em vez de um enaltecimento do tema. A geração pós-guerra deveria reagir contrariamente ao discurso retórico pois tudo que cheirava à retórica e eloquência recaia sob a suspeita de uma hipocrisia ultrajante. A interpretação de Berlin é perfeita, a geração pós-guerra associava àquela postura a uma geração que os havia traído impiedosamente. Porém, Berlin acusa o erro de interpretação de nosso candidato à crítico. Apesar de ter pleno direito à sua escala de valores, como todo crítico pode ter, seria um erro rejeitar a prosa de Churchill como uma fachada falsa, como uma impostura oca. A revivescência gótica, por exemplo, era mais autêntica do que o realismo que se afigurava no panorama literário e político. Para Berlin, o princípio organizador de seu universo moral e intelectual é uma imaginação histórica tão forte e tão abrangente a ponto de encaixar todo o presente e futuro na moldura de um rico e multicolorido passado. Essa abordagem é dominada pelo desejo de encontrar sentidos morais e intelectuais fixos, de dar forma, cor e direção à corrente dos acontecimentos. Foi exatamente esse desejo que adormeceu na modernidade tardia. Vale dizer que esse também era o sentido dos historiadores católicos, dos filósofos românticos e dos próprios marxistas. O que ocorria é que essas gerações possuíam o ímpeto e o conteúdo para simbolizar, por esse motivo, pensar a história por um sentido não era mero escapismo. Os arcaísmos de estilo se justificavam pelo valor da história e pelo sentido que se assumia para as ações humanas. Berlin acentua, ainda, que a linguagem de Churchill é marcada por um ritmo pesado, ousado e uniforme. Os ecos clássicos são bastante óbvios, o produto é, entretanto, único. Qualquer que seja atitude que possa ser tomada para com essa prosa, ela deve ser reconhecida como um fenômeno de grande escala de nosso tempo. Ignorar ou negar isso significaria ser cego, frívolo ou desonesto.
Aqueles que se acostumaram a pensar a história sem um sentido teleológico, como nós na modernidade tardia, compreendem com menor intensidade um jogo de ideias e de símbolos relativos à historicidade ou simplesmente não compreendem um discurso como “This was their finest hour”, título comumente atribuído a um discurso proferido por Winston Churchill à Câmara dos Comuns do Parlamento do Reino Unido em 18 de junho de 1940, que explica o contraponto do título do filme Darkest Hour (em português, O destino de uma nação). Já o ainda mais famoso “We shall fight on the beaches” se tornou um hino inglês, capaz de ser recitado diariamente em pubs e escolas primárias. A nova geração também o conheceu talvez mais por efeito do introito de “Aces High”, um dos hits da banda inglesa Iron Maiden, do que propriamente por seu contexto sombrio. Este fato aparentemente banal guarda um aspecto relevante. Um discurso proferido no parlamento inglês por um político conservador dificilmente seria usado na introdução de uma música de uma banda de heavy metal 40 anos depois se não tivesse um significado mais abrangente do que a facticidade do momento, mesmo que o uso seja paródico. Há aqui um exemplo que Berlin usaria contra os defensores do realismo contra a retórica, a épica e a eloquência.
Essa digressão inicial, pela qual me desculpo tardiamente com o leitor, é motivada por uma interpretação pouco usual. O destino de uma nação, além de mais um filme sobre a segunda guerra, o que sempre amplia nossas possibilidades de interpretação histórica, é, também, um filme sobre o poder da linguagem. A cena final não deixa dúvidas sobre isso. No parlamento inglês, contra todas as expectativas, Churchill é ovacionado por liberais e conservadores ao defender a resistência às negociações de paz com Hitler. Perguntado por um parlamentar sobre o que teria acontecido, um político presente à plenária teria dito: “Churchill acabou de mobilizar a língua inglesa contra Hitler”. Além de tentar reproduzir o ambiente sombrio daqueles anos de guerra, Joe Wright e Anthony McCarten tentaram deixar claro que Churchill não era um político convencional e o aspecto que mais o destacava em relação ao mediano era, sem dúvida, o uso e a concepção da linguagem.
Alguns fatos da vida de Winston Churchill são pouco conhecidos. Churchill foi jornalista e escritor e recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1953. Estas atuações parecem ter sido superadas por sua carreira política. De fato, ele se destacou pela capacidade de interpretar o perigo representado por Hitler bem antes de seus coetâneos. Segundo historiador John Lukacs, a inflexível oposição de Churchill contra Hitler foi fundamental para os destinos da Segunda Guerra. Desde a metade da década de 20, o estadista alertava o Reino Unido sobre o perigo da mística teutônica do cabo Adolf. Contra um fraco Chamberlain, primeiro ministro que o antecedeu, de seu próprio partido (conservador), apresentou uma tenaz resistência a qualquer tipo acordo ou tratado com Hitler. Esta postura acabou por forçar o Führer a cometer o erro final, a invasão da União Soviética. O filme acerta no roteiro, retratando o período de maior tensão na carreira deste polêmico estadista. Gary Oldman é forte candidato ao Oscar de melhor ator. Darkest Hour não é uma obra-prima, mas tem as suas chances em um ano fraco para o Oscar. Façam suas apostas.