Gabriel Rodrigues de Mello e Maria Carolina Gonzalez
Em 22 de março de 1963, o mundo passaria a conhecer a potência e a ambição do famoso quarteto de Liverpool em apenas 32 minutos. Apesar da pouca duração, o impacto que Please Please Me trouxe para o rock e para a evolução da indústria musical ainda é modelo para várias gerações.
A produção do álbum também foi curta. Em apenas 12 horas, a banda gravou 10 das 14 faixas presentes no disco. O restante já estava salvo em fitas produzidas em 1962. O objetivo do produtor musical George Martin, “o quinto beatle”, era ousado: representar no álbum, com máxima fidelidade, a atmosfera dos shows no Cavern Club, onde o carisma dos Beatles foi apresentado pela primeira vez. John Lennon mais tarde concordaria que isso foi o mais próximo que o público chegou das antigas apresentações em Liverpool, antes de se tornarem um Beatles “mais inteligente”.
Martin não conseguiu realizar a produção no famoso bar, mas o estilo que os Beatles levaram para a primeira experiência nos estúdios Abbey Road concretizou a magia do álbum ao se aproximar da mistura entre harmonia e gritos. Até esse ponto, os Beatles eram basicamente intérpretes. Seis faixas de Please Please Me são covers, escolhidos por Martin e pela banda, que logo ganhariam o devido destaque nas versões do grupo.
A origem da dupla
Foi com Please Please Me que a célebre assinatura Lennon–McCartney (originalmente McCartney–Lennon) começou a prosperar, contando com quatro faixas, incluindo aquela que deu nome ao álbum. “Please Please Me” foi lançada inicialmente como single em janeiro de 1963, depois do sucesso de “Love Me Do”. A canção, com um apelo sexual um tanto camuflado, fez George Martin desconfiar da capacidade musical da banda a princípio. John e Paul logo trataram de trabalhar em um novo arranjo para diminuir ao máximo as influências nada discretas do repertório de Roy Orbison e Bing Crosby. O novo ritmo, os “come on, come on” e a gaita na introdução garantiram aos Beatles seu primeiro single número 1 nas paradas inglesas.
Só mesmo com os Fab Four o final de 12 horas de gravação poderia render uma boa história que possa ser coincidência ou a confirmação de que eles eram destinados ao sucesso. O ilustre cover de “Twist and Shout” foi a última faixa a ser produzida. A voz de John foi escolhida para assumir o vocal depois de passar por um dia inteiro gravando e tomar pastilhas para garganta em consequência de um resfriado. De maneira cômica, os gritos e a voz rasgada em dois minutos e meio de música começaram a dar forma à imagem da Beatlemania. Por muito tempo essa música foi escolhida para encerrar os shows, levando histeria para qualquer lugar em que tocavam.
Solidificando a banda como símbolo mundial
De certa maneira, o álbum representa os primeiros clichês que criamos ao pensar nos Beatles. O tom romântico e um tanto melancólico das músicas, o começo da fase que os tornariam conhecidos pelos “iês, iês, iês” e a imagem de quatro jovens de terno com cabelos no estilo moptop. Os Beatles não poderiam ter começado de um jeito melhor.
Caso tivessem esperado alguns meses, talvez o álbum de estreia contasse com “She Loves You”, “It Won’t Be Long”, “I Want To Hold Your Hand”, “All My Loving”, entre outros sucessos lançados posteriormente. No entanto, sua essência está justamente na ousadia, seja na composição de canções próprias ou em lançar arranjos novos para o estilo, servindo de modelo em uma época que o rock e pop não eram tão maduros na Inglaterra. E a recepção não poderia ter sido diferente: Please Please Me ficou por 30 semanas no topo dos charts britânicos antes de ser substituído por With The Beatles.
Daqui pra frente a história já é familiar. Apesar do sucesso do álbum de estreia, os Beatles avançaram sendo conhecidos por não se prenderem em fórmulas prontas e sempre buscarem experimentar em trabalhos futuros. O primeiro álbum de uma banda que se consagrou pelas inovações não poderia ser diferente: simples. Paul McCartney descreveria Please Please Me como um trabalho incrivelmente barato, sem bagunças, “apenas um enorme esforço nosso.”
A febre beatlemaníaca
O pontapé inicial havia começado uma histeria sem precedentes. Em breve, o quarteto de Liverpool teria que se refugiar no estúdio para poder dar mais atenção aos seus próprios gritos internos ao invés do frenesi da plateia. Em 29 de agosto de 1966, no Candlestick Park, a banda encerrou quatro anos de turnês com um setlist que sensatamente ignorava todas as faixas de seu mais recente disco, Revolver. Não só a música em si que era inviável para apenas quatro pessoas tocarem ao vivo, mas os próprios integrantes estavam exaustos da rotina. De acordo com Ringo: “John queria desistir mais do que os outros. Ele dizia que já tinha tido o suficiente.”
O afastamento do público foi essencial para que o quarteto pudesse se voltar de uma vez por todas ao teor subjetivo de suas letras, assim como a experimentação musical que caracteriza seus álbuns na segunda metade dos anos 60. Este caminho conduziu a banda até o aclamado Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, que mesmo utilizando estrutura e símbolos populares – a essência da fase beatlemania –, conseguia concentrar o foco temático das faixas de forma muito mais pessoal e subjetiva: uma conquista de precisão emocional impulsionada pela instrumentação psicodélica. No entanto, a individualidade como força motora de criação somente atingiu o seu auge um ano depois, com o lançamento de The Beatles, o famoso álbum branco.
No começo de 1968, seguindo a tendência da época e a insistência de George Harrison, os quatro foram para a Índia participar de um curso de Meditação Transcendental com o guru Maharishi Mahesh Yogi. George já havia mostrado interesse pela cultura indiana desde que havia ouvido pela primeira vez a música de Ravi Shankar, em 1965. A obsessão que começou pela música inevitavelmente transbordou para a espiritualidade hinduísta e logo a banda inteira estava no mínimo intrigada com o país.
A viagem não foi tão ideal quanto George esperava. John tinha uma atitude imatura em relação à meditação e impacientemente exigia respostas. Ringo e Paul voltaram para Londres antes dos outros dois por diversos motivos que os impediam de se dedicar como o beatle quieto. O golpe final foi quando surgiram denúncias de que o Maharishi havia assediado a atriz Mia Farrow, além de outras pessoas que participavam do curso. O episódio resultou na faixa “Sexy Sadie”, escrita ainda na Índia por Lennon, que mostrava a sua desilusão com o supostamente virtuoso guru.
O surgimento das forças opostas
Não é coincidência que a busca pela espiritualidade condisse com o distanciamento dos componentes da banda. De um jeito ou de outro, o quarteto sabia que não se podia transcender espiritualmente como um conjunto: o isolamento dos membros contribuiu para a evolução de cada um, individualmente. E é nesta lógica que o álbum branco se baseia e prospera.
As faixas de Lennon lembram a intimidade que permearia sua carreira solo. Por exemplo, “Julia” é uma singela confissão que retrata uma falsa lembrança de sua mãe. Por outro lado, “Glass Onion” utiliza a imagem de uma cebola de vidro – com camadas transparentes – para uma autorreflexão que desconsidera a busca por significados escondidos pelos fãs nas músicas da banda, valorizando a subjetividade do processo todo.
Em contraponto à delicadeza de “Julia”, “Yer Blues” mantém o tom confessional, pegando emprestado a energia do blues como válvula de escape para a angústia. A faixa é uma demonstração da capacidade dos Beatles de conversarem entre si instrumentalmente, assim como é um dos mais fortes argumentos de que John soava bem mais sincero cantando raiva do que amor.
Outro destaque vindo de Lennon é “Revolution 9”. Influenciado por Yoko Ono e pela música concreta em geral, a faixa de mais de 8 minutos é uma colagem sonora de diálogos, trechos de músicas, ruídos, gritos, etc. De acordo com Lennon, a composição seria um tipo de representação sônica de uma revolução, embora seja isenta de qualquer significação fixa. A própria inclusão da faixa em um álbum da banda mais popular do mundo já é, por si só, uma revolução contida.
É impressionante ver o quão bem Paul McCartney conseguia encontrar o equilíbrio entre suas baladas mais inofensivas – como “Martha My Dear” e “I Will” –, e as composições mais energéticas como “Why Don’t We Do It in the Road?” e, principalmente, “Helter Skelter”. Esta última foi uma espécie de homenagem ao barulho. No estúdio, a banda inteira se esforçara para tocar o mais alto possível, sendo uma das poucas gravações do álbum que a união do grupo ainda tinha um papel importante.
Segundo McCartney, helter skelter é um brinquedo de parquinho semelhante a um escorregador, do qual o músico usou a sensação da descida como fonte para a energia crua dos instrumentos. O resultado é um tipo de força cega, sem finalidade e nem contexto, que existe em um instante e desaparece rápido demais para perguntas. A faixa não poderia terminar de outra maneira, senão com o grito de Ringo: “I’ve got blisters on my fingers!” (“Eu tenho bolhas nos meus dedos!”).
O baterista possui apenas uma composição no disco, sendo essa a primeira que escreveu sozinho. “Don’t Pass Me By” mistura elementos de country e blues para montar uma atmosfera deprimente, enquanto Ringo descreve memórias da amada se confundindo com a sua realidade solitária. Starr, no resto do álbum, mantém sua admirável habilidade de acompanhar quaisquer ideias novas dos outros três, sabendo dosar suas contribuições como ninguém.
O segundo músico mais contido na banda é George Harrison, o que mais aproveitou a viagem à Índia, não só espiritualmente, mas musicalmente. Logo após a despedida de Maharishi, George foi visitar Ravi Shankar. O músico indiano, para George, foi a inspiração que Maharishi falhou em ser.
De volta aos estúdios, George já havia gradativamente conseguido um pequeno espaço nas composições da banda nos álbuns anteriores. No álbum branco, ele abandonaria os arranjos indianos presentes em suas faixas de álbuns anteriores, como “Love You To” e “Within You Without You”, para criar um som próprio.
A imaterialidade incentivada pelo hinduísmo estimulou Harrison a reduzir sua presença, já elusiva, a um tipo de vulto espectral. Uma das músicas mais famosas da discografia inteira da banda é “While My Guitar Gently Weeps”, escrita por George, que chamara seu amigo Eric Clapton para tocar guitarra solo. Os vocais lamentam o potencial perdido da humanidade, que nunca foi ensinada a propriamente “desdobrar o seu amor”. Ao final, os instrumentos elevam a tensão emocional da canção, transformando a voz de Harrison em gritos e gemidos.
Assim como John, George também antecipou a temática das suas músicas de sua carreira solo, principalmente com “Long, Long, Long”. A canção relata a relação de George com Deus, ou consigo mesmo, já que ele via a religião intrinsecamente ligada ao seu Eu interior. Acompanhado pelo órgão pacífico tocado por Paul e em conflito com a bateria dissonante de Ringo, a música reconta a conturbada jornada em busca de si mesmo.
O começo do fim
A individualidade ganhou uma imensa força durante a criação do álbum branco. A própria capa vazia do disco se contrapõe com a colorida e lotada do Sgt. Pepper’s. Se esta mostrava as diversas influências da banda, é válido pensar que The Beatles faz o mesmo, só que desta vez os membros estavam tão autocentrados que a estampa mais sincera seria vazia. Essa decisão também ajuda a valorizar o álbum como uma obra exclusivamente sonora e livra a banda de dar a mínima explicação sobre o conteúdo. O diferencial deste em relação aos seguintes é que ainda existia uma ligação entre os quatro, sendo que o afrouxamento de suas dependências passou a ser um importante elemento temático e estético.
É tragicamente intrigante pensar que a harmonia que levou os Beatles ao sucesso, evidente desde Please Please Me, foi sendo dissolvida aos poucos, enquanto cada membro fazia uso de sua fama, experiência e dinheiro para caminhar em direções opostas. Parece que todos os fatores – idade dos músicos, época do sucesso, influências em comum, etc. – contribuíram para traçar os altos e baixos do grupo, e o talento de cada um permitia uma atitude criativa em relação às crises. Por fim, o White Album captura a fase de transição em que a banda estava unida o suficiente para autorreferenciar o seu próprio distanciamento, juntos.
Um comentário em “Os Beatles quebrando a cebola de vidro”