Vitor Evangelista
Ryan Murphy é uma fábrica de fazer séries. Apenas listando as produções que ele idealizou nos últimos meses, a lista é extensa. Seja com Pose, drama sobre a comunidade trans nos anos oitenta, onde ele toca em pontos sensíveis e brutos de uma realidade humana, ou na sátira engravatada de The Politician, que não fede nem cheira, em American Horror Story, o produtor brinca com elementos de terror e medo para contar fábulas táteis a quem assiste.
No nono ano da antologia, Murphy, ao lado de Brad Falchuk, retorna aos anos oitenta para deliciar seu espectador com muitas mortes, acampamentos juvenis e um elenco repleto de caras novas. AHS 1984, como ilustra todas peças de marketing da temporada, foca num pequeno grupo de conselheiros a caminho do Acampamento Redwood. Local este conhecido por ter sido palanque de uma massacre anos antes, tudo cometido pelo notório (e agora preso numa instituição hospitalar) Mr. Jingles, numa arrebatadora performance de John Carroll Lynch.
Com todas as cartas na mesa, se inicia nossa história. A temporada se desenvolve em dois distintos blocos narrativos. Os cinco capítulos iniciais detalham a noite da chegada dos amigos ao Acampamento. Indo na contramão de anos anteriores, AHS não perde tempo em correr (no bom sentido) com a trama que quer cobrir. O principal trunfo deste começo da história é justamente o jogo da velha que o roteiro faz com seus personagens. Alocando e realocando seus peões pelo enorme tabuleiro de Redwood, os criadores dinamizam as interações e, de quebra, extraem um ótimo material cômico-dramático de seu elenco. O segundo bloco, com as quatro horas finais de 1984, é inferior ao primeiro, mas tem seus méritos.
Sem Sarah Paulson e Evan Peters protagonizando a temporada, AHS 1984 ilumina diversos outros atores que, mesmo estando no seriado em papéis recorrentes, nunca tiveram espaço para crescer. Emma Roberts vive Brooke, tímida e com sentimentos reprimidos, a garota dá o pontapé inicial e posiciona o espectador dentro da história. Num ano que carrega nos ombros uma personagem que não seja caricata, a atriz adiciona boas camadas de desenvolvimento para Brooke e ainda enriquece a jovem, fechando um belo arco de redenção e, por mais cínico que pareça, otimismo.
Angelica Ross é outra que toma a temporada para si. Primeira atriz trans na história a integrar o elenco principal de dois seriados, a (também) estrela de Pose é uma força da natureza. Sua enfermeira Rita foge da construção clichê de médico e o monstro e demonstra um nível visceral de humanidade. Isso adendo ao fato de que, quando a temporada necessita da raiva e da soberba de Ross, ela entrega perfeitamente.
Fechando a tríade feminina que compõe AHS 1984, a talentosa Billie Lourd. Já estando presente em Cult e Apocalypse, Ryan Murphy dá palco para ela efervescer loucura, raiva e uma sexy sabedoria para Montana, sua personagem professora de aeróbica. Inclusive, as cenas que contam com a presença das três atrizes transmitem uma bela energia, sensação essa que fazia falta ao seriado, visto os últimos dois anos do show, que passaram batido em quesito emoção ou mesmo novidade.
Boa parte dessa vitalidade e força de comando de AHS 1984 se deve a seu elenco. Além das já citadas Roberts, Ross e Lourd, o time de atores que estrelam o nono ano da série é digno de menção. A começar pelo, a princípio, antagonista, Mr. Jingles. Interpretado por John Carroll Lynch (que já viveu Twisty, o Palhaço de Freak Show). O roteiro brinca com devaneios históricos de slashers oitentistas, mas é quando a trama bebe na psicologia e na memória que o acerto é mostrado. O ator trabalha em vários âmbitos e níveis de raiva, medo, angústia e amor. Num trabalho digno de nomeação a premiações, Carroll Lynch impressiona, domina os ambientes que atua e ainda é um deleite de ser assistido.
No time do ‘bem’, Cody Fern se diverte e abusa de maneirismos sensuais para dar vida a seu Xavier, mesmo o personagem perdendo espaço conforme a trama avança. Outro que impressiona é Gus Kenworthy, que convence e se assusta bastante na pele de Chet. Leslie Grossman finalmente se mostra relevante à série e sua performance como Margaret Booth é, ao mesmo tempo, excruciante e deliciosa.
Matthew Morrison, de Glee, é uma sátira ambulante e está bem no papel do treinador Trevor (a piada recorrente com seu personagem nunca perde a graça). Agora é necessário destacar a entrega de Zach Villa interpretando o célebre (e real) assassino Richard Ramirez, o Night Stalker. O ator esbanja carisma, transborda um cinismo sensual e ainda assusta qualquer um com a fala e o jeito que move a cabeça. Sua participação é outro grande deleite e surpresa de AHS 1984.
A temporada ainda esconde cartas na manga e traz o retorno de alguns atores veteranos do seriado. Todas as adições são bem-vindas e agregam positivamente à narrativa como um todo. Agora, quanto às referências e menções aos outros anos de American Horror Story, 1984 é bem singela. Existem, é claro, alguns acenos e risadinhas de canto de rosto, mas os criadores contam uma história centrada e focalizada num único objetivo, sem espaços para desvios desnecessários ou barrigas pelo caminho.
A temporada anterior de American Horror Story, Apocalypse, quebrou a estrutura antológica do seriado de uma vez por todas. O esperado crossover de Murder House e Coven deu continuidade a eventos passados da série e, num laço poético, fechou o ciclo que AHS precisava. A abertura de 1984 já escancara esse ponto. Lúdicos, enervantes e bebendo da nostalgia (como todo o cerne do 9º ano), os créditos iniciais são refrescantes a quem já acompanha as mesmas estruturas e narrativas por quase uma década.
Tomando como base a coluna vertebral das temporadas passadas, AHS sempre teve um pé mais forte no pessimismo ao fechar suas temporadas. A morte no fim de Murder House, ou a última fala de Asylum, até mesmo o fecho final de Hotel. A produção, agora numa nova leva, opta por otimizar todos seus fantasmas e serial killers, virando súbita e inesperadamente uma chave de boas intenções e ternura. O capítulo que encerra 1984, Final Girl, diz muito sobre a mensagem que Ryan Murphy e Brad Falchuk querem eternizar com a temporada.
A promessa do massacre de 1989 é jogada para escanteio quando conhecemos versões futuras dos personagens que acompanhamos ao longo de oito episódios. E, mesmo que a resolução possa parecer simplória ou até mesmo descuidada, esse passo para o lado direito da sorte é o que faz AHS 1984 ser tão atual e vigoroso para a mitologia do seriado. Ao dar mais propriedade e sustância àqueles que circundam o hall da morte, Murphy e Falchuk criam a antítese perfeita aos anos oitenta. Fugindo do óbvio, do escancarado e do ridículo, a dupla cultua o passado e, de forma paralela, saúda o nosso presente.
Mesmo que a primeira impressão sobre a temporada seja a de uma reciclagem despropositada, os nove capítulos que compõem o ano provam o contrário. AHS 1984 é o início de novo ciclo que a série precisava, renovando rostos e tramas, e dando emoção ao todo final. Os clichês e maneirismos dos slashers estão presentes mas são apenas mecanismos do roteiro, tudo acaba evoluindo para um belo estudo da mente humana, de seus medos e receios e, o mais forte aqui, de sua redenção.