João Pedro Pinheiro
Completaram-se, em 2016, os 75 anos da primeira edição brasileira (1941) de Admirável Mundo Novo, principal obra do escritor e visionário britânico Aldous Huxley, publicada inicialmente na Inglaterra, em 1931. E, embora escrito há mais de oito décadas, o livro continua surpreendendo com sua atualidade.
Imagine-se em um mundo perfeito, em que as pessoas sejam felizes e despreocupadas com o que se passa à sua volta (cá entre nós, estamos precisando um pouco disso ultimamente). Nada de estresse, nada de confusões, nada de instabilidades, nada que possa tomar seu precioso tempo ‒ já que tempo é dinheiro, e dinheiro não se joga fora. Parece bom, não é mesmo? Agora, imagine que a sua única opção é a de ser feliz e despreocupado, embora consciente do que se passa a seu redor. Você é obrigado a estar permanentemente alegre. Esta é “a sociedade perfeita”, e sociedades perfeitas não admitem pessoas infelizes. Creio que não seja mais tão bom quanto lhe parecia há pouco.
A famosa distopia de Huxley nos apresenta essa utopia, na qual todos vivem eternamente felizes e satisfeitos com a vida. Nela, as pessoas passam a ser fabricadas em centros de inseminação artificial e divididas em castas, hierarquizadas cada qual com suas capacidades, condicionamentos e futuros determinados. Cada qual com sua posição social e função a exercer no grupo. Aqueles mais bem aptos serão os que ocuparão os melhores cargos e que comandarão a sociedade, a fim de manter a ordem estabelecida.
Aos menos aptos, cabem os serviços árduos e maçantes, realizados sem protestos, já que eles são preparados exclusivamente para este fim. As castas inferiores sofrem processos intensos de hipnopedia (aprendizado durante o sono) e retardo mental, proporcionais à sua posição, para que todos os setores da economia sejam supridos, mesmo aqueles que uma pessoa “preparada” dificilmente toparia ocupar. E, é claro, com isso, eles não podem reclamar de sua condição. Em casos de emergência, há o “soma”, comprimido que faz a pessoa esquecer de seus problemas, a partir de alucinações. Assim, o governo é capaz de controlar a vida das pessoas antes mesmo de seu nascimento e então sustentar uma sociedade estável e eternamente feliz. A estabilidade seria completa.
Contudo, os membros da casta alfa, a mais desenvolvida mental e fisicamente, são capazes de fazer aquilo que os outros não podem: questionar, pensar. O ato de pensar, inclusive, é inaceitável nas castas inferiores, que são ensinadas a partir da hipnopedia e do condicionamento pavloviano que ler e refletir é condenável. Isso não o é para os alfas. Graças a isso, um desses sujeitos passa a se questionar se essa é a sociedade perfeita que lhes é dita. Ele foge de sua minoridade, deixa de lado a felicidade eterna e passa a incomodar o governo. Este é, basicamente, o enredo do livro de Huxley.
Embora inúmeros filmes bebam da fonte de Admirável Mundo Novo, como A Ilha e Gattaca, a obra só recebeu duas adaptações para a TV, em 1980 e 1998.
O Admirável Mundo Novo sustenta-se a partir da minoridade de seus membros. O governo exerce a tutela sobre cada ser humano desde que ele é fabricado nos centros de incubação até o momento da morte. Assim, ele consegue fazer com que as pessoas ajam da maneira que melhor lhe agrade. As pessoas não conseguem alcançar o esclarecimento e, consequentemente, não podem se livrar dessa realidade perturbadora.
Para Kant, o homem só é capaz de alcançar o esclarecimento a partir do momento que alcança sua maioridade, libertando-se das amarras que lhe prende à tutela de uma instituição. Nessa sociedade perfeita, mesmo os que conseguem escapar do domínio não podem fazer uso público de sua razão, pois a influência do governo sobre os outros membros é tão forte, que eles seriam incapazes de compreender as diferenças apresentadas. Isso fica claro quando se chocam a civilização londrina, onde se passa o enredo do livro, e a personagem do selvagem John, vindo de uma reserva indígena, que ainda mantém os valores da sociedade anterior à essa revolução ocorrida na forma de se viver.
Inevitavelmente, Admirável Mundo Novo nos faz comparar a influência do governo do livro, que faz com que o homem viva para satisfazer seus prazeres e sua felicidade, com o poder de convencimento da propaganda. Lembre-se: a obra foi publicada antes da chegada de Hitler ao poder na Alemanha. A propaganda política nazista é até hoje considerada a mais bem-sucedida em sua missão de persuadir o povo. O próprio Hitler escreveu em seu polêmico Mein Kampf que “a propaganda política busca imbuir o povo, como um todo, com uma doutrina… A propaganda para o público em geral funciona a partir do ponto de vista de uma ideia, e o prepara para quando da vitória daquela opinião”. A propaganda busca rebaixar as pessoas em uma minoridade, na qual o objetivo delas é o de buscar o prazer e a felicidade a partir do que lhes é oferecido.
Aldous Huxley também faz sua crítica ao fascínio pelo progresso científico. Graças a ele, tornou-se possível fabricar seres humanos, cloná-los e condicioná-los a determinada função social. Novamente, lembre-se: a obra foi publicada nos anos 30. O primeiro nascimento de ser humano produzido a partir de uma fertilização in vitro, método que melhor se assemelha ao que ocorre no livro, ocorreu em 1978. Alguns anos depois, em 1997, nascia a ovelha Dolly, primeiro mamífero clonado com sucesso a partir de uma célula somática adulta. Embora a clonagem humana não tenha avançado como no mundo fictício da obra, a ciência vem nos mostrando que o imaginário de Huxley vem se comprovando.
Via PBS/blank on blank
Felizmente, em alguns aspectos o autor errou. Um deles é em relação à hipnopedia como apresentada no livro. O estudo mais recente, do Instituto Weizmann de Ciência (Israel), publicado em 2012, descobriu ser falsa a ideia de que se pode induzir alguma ação ou pensamento a partir de ensinamento verbal, como na exposição a frases morais durante o sono. Entretanto, o mesmo estudo mostrou que induções não-verbais, como o reconhecimento de odores, é capaz de surtir efeito.
Toda a construção dessa sociedade imaginária gera uma preocupação crescente no leitor a cada página. O autor consegue nos convencer de que o mundo por ele imaginado pode sim ser real. Huxley não escreve sobre criaturas sobrenaturais, universos paralelos ou robôs dominando o planeta; ele escreve sobre seres humanos, vivendo em uma ordem estabelecida a partir de avanços por eles mesmos alcançados a partir da ciência (não só na ficção, como no mundo real também!). E se não tomarmos cuidado, o mundo como conhecemos hoje pode, num futuro quem sabe não tão distante, se tornar um Admirável Mundo Novo.
*Texto realizado por João Pedro Pinheiro para a disciplina de Filosofia, da graduação em Jornalismo da UNESP.