Completando 15 anos em julho, A Viagem de Chihiro é o filme mais aclamado do diretor Hayao Miyazaki e guarda correspondências com um clássico da literatura
Gabriel Leite Ferreira
“Quando penso em criar um protagonista masculino, tudo fica muito complicado”, diz o diretor Hayao Miyazaki em entrevista ao periódico japonês Animage, no ano de 1988. Naquele momento, ele é um dos profissionais de animação mais aclamados no Japão por O Castelo de Cagliostro (1979) e Nausicaä do Vale do Vento (1984), e as particularidades de suas obras, mais especificamente o grande número de protagonistas do sexo feminino, são alvo da curiosidade do público e da crítica. Sobre isso, Miyazaki afirma que histórias de aventura com protagonistas masculinos sempre pareceriam uma cópia de Indiana Jones, além de atentar para a necessidade de protagonistas femininas ativas não terem uma aparência “sem graça”, o que segundo ele seria uma contradição. Contudo, há 15 anos o diretor subvertia esses conceitos em seu filme mais festejado, A Viagem de Chihiro, vencedor do Oscar de Melhor Filme de Animação em 2003.
Chihiro é uma garota de 10 anos que está se mudando a contragosto. Durante a viagem para a nova cidade, seu pai erra o caminho e a família entra em um antigo parque temático. Chihiro se sente desconfortável no lugar e implora para ir embora, mas seus pais param em um restaurante abandonado e se servem de um banquete, sendo em seguida transformados em porcos. A partir daí, a menina se vê em um mundo alternativo que gira em torno da casa de banhos da bruxa Yubaba, figura tirânica que ameaça a existência da garota e de sua família. Para sobreviver nesse ambiente hostil ela contará com o auxílio de Kamaji e Lin, dois funcionários da casa de banhos, Zeniba, a irmã gêmea de Yubaba, e Haku, personagem especialmente esférico primordial na trama.
A ideia para A Viagem de Chihiro surgiu da relação de Miyazaki com as filhas de um colega de trabalho. Conversando com elas, o fundador do Estúdio Ghibli (referência em animação a nível mundial) percebeu que os romances adolescentes que a indústria cultural oriental oferecia a garotas de 10 anos de idade não guardavam qualquer semelhança com o que elas realmente se identificavam. Foi pensando nisso que ele criou Chihiro, uma garota comum, sem grandes atributos aparentes, assim como aquelas que a inspiraram. Chihiro não é uma figura pura e messiânica como Nausicaä ou uma jovem bruxa com gosto pela aventura como Kiki de O Serviço de Entregas da Kiki (1989); afinal, ela sequer queria deixar sua antiga cidade, a princípio.
No caso de A Viagem de Chihiro, o processo criativo de Miyazaki remete inevitavelmente ao contexto que levou o matemático inglês Charles Lutwidge Dodgson a escrever Alice no País das Maravilhas sob o pseudônimo de Lewis Carroll. Em 1862, Dodgson embarcou em um passeio de barco com o reverendo Robinson Duckworth e as três filhas de seu amigo Henry Liddell: Lorina, Alice e Edith. Na ocasião ele contou às crianças as aventuras de uma garota chamada Alice. Alice Liddell pediu que ele passasse o conto para o papel e, a partir daí, nasceu um dos grandes clássicos da literatura mundial.
As semelhanças não param por aí. Tanto Alice quanto Chihiro são garotas na puberdade, a ponte entre infância e adolescência. As mudanças constantes nesse período são metaforizadas no romance de Carroll pelas várias vezes em que o corpo de Alice cresce e diminui, influência da ingestão de cogumelos e outros alimentos, e pela dificuldade dela em recitar poemas corretamente mesmo sendo uma aluna exemplar. Em A Viagem de Chihiro, isso pode ser relacionado à invisibilidade gradual da protagonista logo após o anoitecer no mundo alternativo, evitada pela ingestão de um bolinho de arroz dado a ela por Haku.
Outro par de personagens correspondentes são a Rainha de Copas e a bruxa Yubaba. A Rainha de Copas não é uma vilã no sentido mais literal, apesar de ordenar execuções a todo momento: “É tudo fantasia dela. Eles nunca executam ninguém, sabe”, confidencia o Grifo à Alice em uma passagem do livro. Esse autoritarismo ridículo pode ser uma referência à Guerra das Rosas (1455-1487), conflito entre as dinastias Lancaster e York pelo trono da Inglaterra, mais especificamente à rainha Margaret de Lancaster; ou uma crítica à gestão da rainha Vitória, que na época da publicação do romance estava em declínio. No entanto, não há um consenso.
Por sua vez, os vilões de Miyazaki são notórios pela esfericidade e a proprietária da casa de banhos é um grande exemplo. Mesmo sendo temida, ela dá um emprego para Chihiro e é totalmente dominada por seu filho, um bebê gigante mimado. A presença de uma antagonista expressiva é sintomática: A Viagem de Chihiro estreou nos cinemas em meio a uma crise financeira no Japão.
O fantasma da crise permeia todo o filme, mesmo que de forma discreta. Em outra entrevista à Animage, em 2001, Miyazaki discorreu sobre a nostalgia que o Edo-Tokyo Tatemono, museu de arquitetura do período Edo ao ar livre do Japão (um parque temático), despertava nele e deu seu parecer sobre a situação do país na época, destacando como as grandes mudanças no estilo de vida dos japoneses afetaram a percepção de mundo de todos eles e atentando para os tempos anteriores à recessão. Ambas informações ajudam no entendimento de um dos temas principais de A Viagem de Chihiro, isto é, a importância de se lembrar do passado para viver bem o futuro.
Antes de começar a trabalhar na casa de banhos, Chihiro é rebatizada Sen por Yubaba, e a condição para que ela consiga sair do mundo alternativo é não se esquecer de seu nome, sua identidade original. Um acontecimento fantástico se dar em uma cidade desconhecida para a protagonista e ela passar por tudo sozinha, sem a companhia dos pais, não é por acaso. Sua viagem é sobre a transição entre passado e futuro, uma dualidade que envolve vários elementos: a mudança da visão do filho sobre os pais, a dificuldade em se adaptar a novos ambientes e situações, a descoberta do amor e de como é difícil manter-se conscientemente justo e íntegro em toda e qualquer sociedade. Tudo isso com a serenidade do olhar de Hayao Miyazaki, um dos cineastas mais importantes de todos os tempos. As semelhanças de sua grande obra com um clássico da literatura só reafirmam a atemporalidade e universalidade do trabalho do mestre da animação.
No final de Alice no País das Maravilhas, a protagonista abandona o país de maravilhas ao acordar no colo de sua irmã. Ela então se apressa a contar tudo o que viveu – “Oh, eu tive um sonho muito curioso!” – nos mínimos detalhes, cativando a irmã, que admira a criatividade de Alice e se põe a imaginar como ela será no futuro: uma mulher madura, porém conservando a lembrança de seus dias mais inocentes e cativando outras crianças por conta disso. Os momentos finais de A Viagem de Chihiro trazem consigo uma mensagem parecida. A última cena tem a menina olhando para o túnel que a levou para a casa de banhos sem dizer nada, o que, em última instância, é o retrato de cada espectador do filme. A nostalgia que o filme desperta é difícil de ser transmitida por palavras. Resta torcer para que eu, você e Chihiro nos saiamos bem em nossas respectivas viagens.