Vitor Evangelista
‘Quando se tem olhos, é impossível olhar para o nada. Você sempre está perante alguma coisa, baleias, o mar.’ Quando Barb (Jane Morris) diz isso antes de morrer no trágico acidente que enviuvou Ellen (Meryl Streep), A Lavanderia cria uma inusitada e pessimista dicotomia dentro da estranha narrativa que quer contar. Passados os créditos do longa de Steven Soderbergh, é possível afirmar que sim, mesmo tendo olhos, acabamos de olhar para 96 minutos de nada.
A comédia da Netflix encontra um caminho desordenado, com elementos metalinguísticos, narração em off e a quebra da quarta parede para debater fraude e economia, tudo baseado em ‘segredos’ reais. Steven Soderbergh, como bem prova sua filmografia, não segue padrões. Indo da série de filmes Onze Homens e um Segredo (2001) para a pataquada Magic Mike (2012), o americano experimenta diversas técnicas aqui, mas nunca leva o filme até seu máximo potencial. Fator já conhecido da obra do diretor, ele ainda assina a Direção de Fotografia e a Edição, com seus pseudônimos Peter Andrews e Mary Ann Bernard.
O roteiro de Scott Z. Burns (que adapta o livro de Jake Bernstein) não poderia ser pior lapidado. Um argumento fraco adendo ao texto bruto e sem qualquer preocupação em soar interessante ou relevante. Mesmo abordando uma série de assuntos de interesse público, o filme nunca se contenta em traçar uma linha reta de A até B; sobra sempre espaço para uma grande desvio, ora proveitoso, ora excruciante, para enfim chegar ao ponto necessário.
A Lavanderia segue a rotina de Ellen Martin (Streep) após seu marido morrer num acidente de barco e ela receber o dinheiro da seguradora. Ao passo que os advogados fraudadores, Jurgen Mossak (Oldman) e Rámon Fonseca (Banderas) riem e conversam com a audiência. Enquanto a dupla detalha os esquemas de roubo, o filme leva o espectador a diversos pontos do planeta, traçando um mapa que ilustra o tamanho do esquema bolado. A trama adapta a história real do escândalo Panama Papers, que vazou em 2016.
O papel de cinema é, e sempre foi, o de subverter expectativas e contar histórias diferentes, instigantes. Quando um filme assim, encabeçado por um elenco de alto calibre, não consegue cativar sua audiência, algo está errado. Enquanto no papel tudo possa parecer funcional, na prática quase nada orna. A começar por Meryl Streep. Sua Ellen é amargurada, ressentida e relutante em lutar pelo que acredita. A atriz carrega uma dor latente, que cresce conforme ela se desenvolve em cena. Todavia, a participação da personagem nesse mar de confusão é quase injustificável. Fora a tremenda cena final, com um texto bufante e bravejador, a veterana de Hollywood e cadeira-cativa no Oscar estaria aqui para nada.
Quem conduz a produção é a dupla Gary Oldman e Antonio Banderas. Caricatos, os atores criam personas detestáveis para seus personagens, distanciando o público ainda mais da história contada ali. A decisão de Soderbergh em narrar as fraudes aos olhos dos ‘vilões’ da história, embora soe interessante, é só mais uma escolha ruim do filme. Chega a ser estranho pensar que Banderas entregou uma das melhores atuações do ano em Dor e Glória, e logo em seguida se prestou a esse papel na Lavanderia.
Ainda compõe o elenco Jeffrey Wright (ótimo ator, péssimo papel), James Cromwell (que tem pouco tempo de tela, mas encanta como pode), Melissa Rauch (nula ao lado de Meryl Streep, mas a culpa não é dela), David Schwimmer (outro que é esquecido logo que suas cenas acabam). Sobra espaço para uma ponta hilária dos comediantes Will Forte e Chris Parnell (essa dupla junta aquece o coração dos fãs de 30 Rock).
Quem melhor desenvolve a micro-narrativa dentro de A Lavanderia é o núcleo de Charles (Nonso Anozie) e sua filha Simone (a brilhante Jessica Allain). O drama da traição e do suborno é interessante tanto pela interpretação quanto pelo texto. A esquizofrenia do roteiro do filme se torna pedante; enquanto em boa parte da produção o texto é desagradável, existem parcelas com um trabalho bem feito sendo transmitido. A parte chinesa da história é outra que chama atenção positivamente. O principal motivo para tal, talvez sendo a minutagem destas sequências. Normalmente variando na casa dos quinze minutos, estes momentos crescem sua importância exatamente por terem vida curta.
A trilha sonora jocosa retira o espectador da experiência danosa que o filme acaba por transmitir. Plano-sequências elaborados, jogo de câmera inteligente e fora do comum, um uso interessante do visual, todos esses elementos técnicos levam A Lavanderia por um caminho mas são subitamente sabotados pelo cerne de sua história, a narrativa contada. Desperdiçando um elenco magnânimo e cheio de alma, Steven Soderbergh pode enterrar a Lavanderia em qualquer lugar do mundo e perder o mapa.