Gabriel Oliveira F. Arruda
Se eu te pedisse para encontrar uma história que se manteve culturalmente e socialmente relevante ao longo de quase três séculos, seria difícil encontrar uma que permaneceu no imaginário popular tão firmemente quanto A Bela e a Fera. Escrito originalmente em 1740 por Gabrielle-Suzanne Barbot, a narrativa de La Belle et la Bête foi capaz de alcançar uma longevidade singular, sendo constantemente adaptada e reformulada ao longo de sua vida útil para encantar novas gerações de leitores e, eventualmente, telespectadores.
Das dezenas de versões, no entanto, é ainda mais difícil disputar que a mais importante delas seja a animação musical de 1991, dirigida por Gary Trousdale e Kirk Wise e produzida pela Walt Disney Animation Feature. Além da aclamação tanto da crítica quanto do público (e uma bilheteria nada tímida), o longa fez história ao se tornar a primeira animação a ser indicada ao Oscar de Melhor Filme, o prêmio máximo do Cinema. Três décadas depois de sua estreia, vale olhar para o “conto mais antigo que o tempo” e notar as razões da amplitude de seu impacto.
Os temas de A Bela e a Fera não são nem um pouco únicos. É até mesmo possível argumentar que eles são intrínsecos a qualquer história de amor que se preze: a beleza está no interior e é apenas através do amor que somos capazes de nos transformar em pessoas melhores. E de maneira alguma a narrativa do longa de 91 procurava subverter essa expectativa, colocando esses elementos em primeiro plano, preservando o aspecto de conto de fadas da trama que conquistou gerações ao longo dos séculos.
Mas o delicioso sabor de uma animação da Disney também fica evidente desde a primeira cena, o contagiante número musical em que somos introduzidos à Bela da história (Paige O’Hara). O uso das cores em especial, auxiliado pelo uso do software CAPS (Computer Animation Production System), garantiu que todos os cenários e personagens fossem detalhados, distinguíveis e imersivos. Quando pulamos do alegre vilarejo para o castelo sombrio, o contraste entre os dois ajuda a realçar ainda mais o tema de transformação espiritual da obra.
O uso de CAPS também ajuda na criação de perspectiva e na variedade de cores. Imediatamente diferenciamos Bela do resto do resto dos habitantes pelo seu uso da cor azul clara análoga ao céu, pela fluidez e liberdade de seus movimentos e pela maneira como ela voa pelo vilarejo, mal parando num só lugar, enquanto seus vizinhos, na maioria das vezes estáticos, comentam sobre sua estranheza. Gaston (Richard White), introduzido por meio de um tiro, é marcado por tons vermelhos e dourados que falam sobre sua virilidade e cobiça pela jovem mulher.
Mais tarde, quando conhecemos a Fera (Robby Benson) em seu castelo, a combinação do uso de sombras e da trilha sonora ameaçadora se conectam e criam uma introdução genuinamente assustadora. Mas, depois que a conhecemos, vemos que ela usa uma capa carmesim, se aproximando de Gaston, mas mais escura e intensa, que depois se transforma em um azul forte quando acompanhado do amarelo que Bela traz consigo. Apenas num nível visual, A Bela e a Fera ultrapassa o nível de fábula e se torna pura poesia.
Um dos aspectos mais surpreendentes da história é a urgência de sua protagonista na trama. Quase toda escolha que move a narrativa é feita por ela e revela cada vez mais de sua personagem: ela escolhe se pôr no lugar do pai em cativeiro, escolhe ignorar os avisos da Fera quanto a entrar na Ala Oeste do castelo e escolhe não montar em seu cavalo e salvar seu captor após este ter impedido que ela fosse dilacerada por lobos no caminho para casa. Bela não possui grandes ambições definidas ao início da narrativa, mas conforme suas decisões vão se acumulando, vemos uma jovem maior do que a vida que lhe foi imposta, recusando a seguir qualquer caminho que não seja seu próprio.
Por isso é verdadeiramente decepcionante ver concepções modernas da história que a encaram unicamente como uma vítima de suas circunstâncias, fadada a se apaixonar por seu agressor como forma de algum tipo de “síndrome de Estocolmo” (um termo por si só recheado de misoginia e sexismo). Bela nunca muda quem é pela Fera, e nunca cabe a ela a responsabilidade de “mudá-lo”, muito pelo contrário: é a Fera que precisa mudar a si mesma para se tornar um homem digno do amor da mulher. Refletindo sobre o legado de sua personagem, a atriz Paige O’Hara preza por Bela ter sido uma das primeiras e únicas princesas da Disney com mais de 20 anos, o que lhe conferia uma maturidade singular em comparação com as outras protagonistas do estúdio.
O que mais marca a evolução do relacionamento entre os personagens principais é, como em qualquer boa história de amor, a honestidade com que ambos se encaram. Ao início da fábula, a Fera é um animal arisco e ameaçador, governado por seu temperamento e avesso a qualquer tipo de mudança. De fato, no início vemos até um paralelo entre o seu comportamento e aquele de Gaston, o antagonista da história. Egoístas e possessivos, os dois buscam aprisionar Bela de alguma forma, e parecem se frustrar contra a rebeldia da moça. Entre os traços animalescos da criatura, que combinam várias espécies diferentes, o que mais se destaca talvez sejam seus olhos: os olhos de um homem, ansiando pela liberdade, azuis como o vestido que Bela usa quando a conhecemos. Azuis como os de Gaston. Mas enquanto a Fera odeia a si mesma pelo que se tornou, Gaston é o ápice de um narcisista, obcecado com o ideal de beleza que ele criou para si mesmo.
Em seu animado número musical, o vilão é exaltado por suas qualidades que o tornam “machão”. O capanga LeFou convoca os habitantes do vilarejo para ressaltar seu tamanho, sua capacidade para a violência, e até mesmo sua quantidade de pelos. Secretamente, Gaston quer ser algo como a Fera: um ser monstruoso, com um castelo só para si e uma legião de serventes menos do que humanos. Embora o romance entre a Bela e a Fera seja o que define a história, é a duplicidade entre o caçador e sua presa que realça o verdadeiro poder de sua transformação. As ações monstruosas do senhor do castelo são contrastadas pela expressividade de sua culpa e o profundo ressentimento com sua condição. Após o acesso de fúria que faz Bela fugir do castelo, ele desaba sob o peso de seus próprios atos, triste e derrotado.
O aspecto mais duradouro de sua fantasia não é de que uma mulher é capaz de mudar um homem violento, mas de que a capacidade de amar é fundamentalmente capaz de nos transformar em pessoas melhores, independente de quanto tempo nos falta ou do quão monstruosos somos. Com o amor, somos capazes de mudar nós mesmos.
Parte do chamado “Renascimento da Disney”, período entre 1989 e 1999 no qual o estúdio reformulou suas práticas e produziu alguns de seus filmes mais aclamados e relembrados, A Bela e a Fera reuniu o compositor Alan Menken com o liricista Howard Ashman, que já haviam provado seu talento com o sucesso de A Pequena Sereia. Foi a terceira tentativa do estúdio de adaptar o famoso conto, passando por um processo turbulento de produção, marcado especialmente pela morte de Ashman oito meses antes que o longa tivesse sua estreia, vítima da epidemia de AIDS que se alastrou pelos Estados Unidos nos anos 80 e 90.
Quase todas as faixas de sua trilha sonora são consideradas icônicas, e não sem motivo: além de todo o charme típico das animações Disney e sua aliança de movimento e textura com a composição musical, há uma beleza melancólica no coração de sua narrativa que ecoa em suas personagens principais. A história de uma criatura presa em seu castelo, acreditando impossível ser amada, morrendo aos poucos em parte por conta de sua solidão, ecoa de maneira trágica através de seu artista, mas que culmina na maior história de amor já contada. Após ganhar postumamente o Oscar pela canção titular do longa, o parceiro de Ashman, Bill Launch, subiu ao palco junto com Menken para prestar homenagem ao amor de sua vida e o que ele havia deixado para trás.
Nesse período de “Renascimento”, a Disney produziu alguns de seus maiores e mais duradouros clássicos, como O Rei Leão e Mulan e, é claro, A Bela e a Fera. Mas se olharmos com cuidado, há também uma curiosa relação entre a renascença italiana e o trabalho do animador Glen Keane ao capturar a transformação da Fera em homem. Com apenas uma semana para animar a passagem final da criatura, ele viajou para ver Os Burgueses de Calais, onde se inspirou nas famosas esculturas de Rodin, que antes havia se inspirado em Michelangelo, escultores que revelavam na pedra imóvel uma alma vibrante. Assim, no clímax do filme é criada uma cena que sobreviveria ao teste do tempo, mostrando uma metamorfose tão profunda que vai além do físico, revelando o espírito de sua personagem.
Como uma rosa desabrochando, vemos finalmente o Príncipe (posteriormente nomeado Adam), e por um momento, a própria Bela não acredita no que acabou de acontecer. É só quando ela olha em seus olhos azuis, antes aprisionados dentro de um corpo que não lhe pertencia, que sua alma lhe é devolvida. A coisa que se manteve em todos os serviçais encantados do castelo, transformados em parte da decoração como forma de isolar e punir ainda mais o Príncipe: os olhos. Em A Bela e a Fera, são eles que revelam a humanidade de todas as criaturas, da mais linda donzela até o mais terrível monstro.