Nathália Mendes
No segundo sábado da 26ª Bienal Internacional do Livro, dia 9 de julho de 2022, em São Paulo, três mulheres foram convidadas para falar no painel Ser Jornalista no Brasil. Ainda que Miriam Leitão, Ilze Scamparini e Daniela Arbex sejam notórias escritoras, não parecia ser aquele o objetivo de trazê-las ao debate. Enquanto apresentavam seus formidáveis projetos no mundo dos livros, centenas de olhos e ouvidos aguardavam atentamente por outra discussão: por que diabos suas profissões jornalísticas tinham ganho destaque numa das maiores feiras literárias da América Latina?
Essa não é uma pergunta simples de responder. Muito pelo contrário, é mais fácil, a princípio, conhecer os livros que trouxeram as três jornalistas até a Bienal. Ilze Scamparini veio direto da Itália, onde é correspondente da Globo há mais de 20 anos, para divulgar seu romance Atirem direto no meu coração (2021). Segundo ela, a narrativa é “livremente inspirada” em fatos reais, ou seja, numa outra história que, de fato aconteceu, mas nunca havia recebido o olhar de alguém que quisesse entendê-la e levá-la para o mundo.
Já Daniela falou do recém-lançado Arrastados (2021), que conta o desastre ambiental de Brumadinho. Aproveitou, ainda, para dar um spoiler da futura série na Netflix inspirada em seu próprio livro Todo Dia a Mesma Noite: A História Não Contada da Boate Kiss (2018). Enquanto isso, Miriam trouxe justamente o emblemático cenário político brasileiro que ameaça a democracia – e o Jornalismo. Em A democracia na armadilha: Crônicas do Desgoverno (2021), há uma reunião de textos produzidos durante seis anos por ela, formando uma visão histórica a partir do trabalho jornalístico.
E o que, então, é notável que essas obras têm para merecerem estar na Bienal Internacional do Livro? Respondo: As histórias que contam são difíceis e dolorosas, distantes da pura ficção que parte do misterioso imaginário de um escritor. Para além de abordarem duras realidades, elas próprias falam do que é ser jornalista, e essa característica não é simples de ser notada. Da mesma forma, é difícil enxergar o motivo disso ser tão necessário para a sociedade brasileira neste momento. Mas, a multidão que lotou a Arena Cultural precisava – com urgência – de uma resposta. Uma que gritasse ainda mais alto a necessidade desesperadora, angustiante e desconsolada de defender a existência do Jornalismo.
“Esquecer é negar a História”, respondeu Daniela Arbex no painel. E, com isso, apontou duas coisas: a primeira é que nós parecemos sofrer de amnésia instantânea. Isso se dá por termos uma História contada às claras? De jeito nenhum. Ser jornalista no Brasil é enfrentar, justamente, o péssimo hábito que temos – e cultivamos – de transformar a tragédia em glória ao longo do tempo – e esse é um comportamento um tanto quanto complexo, difícil de ser compreendido.
A segunda coisa é que o Jornalismo está em crise – e isso não é um problema de agora, nem só do Brasil. Ilze definiu a perseverança como algo necessário, quase intrínseco, para atuar na profissão em qualquer lugar do mundo. Mais do que isso, ela exemplificou como a crise democrática está entrelaçada com os desafios do trabalho, até em terras tão desenvolvidas e europeias quanto as italianas. Não só os ataques físicos e cibernéticos aos profissionais aumentaram, mas enfrentamos um movimento que busca desacreditar o trabalho. Por isso é tão importante que se compreenda o que é Ser Jornalista no Brasil.
A grande diferença entre a obra de um escritor literário e um jornalista é procurar as histórias sempre no outro, naquilo que já existe e deve ser levado a conhecimento. Esse é um trabalho que as três convidadas fazem com excelência, principalmente Daniela Arbex, que adota tal função para si mesma. Ela nomeou a construção que tem feito através de seus livros como parte da “memória coletiva” que falta ao Brasil. Isto é, tudo aquilo que não foi contado, as pessoas que foram marginalizadas e as histórias que foram ignoradas. Construímos ao longo do tempo um ciclo de catástrofes e destruição que nasceram, foram cultivadas e negadas, enfiadas debaixo dos panos da História. Sem revisitar o passado tenebroso que nos fez chegar ao presente, os repetiremos para sempre.
A construção de uma memória coletiva brasileira se daria, então, como Miriam Leitão pontuou: partindo do primeiro rascunho da História produzido por ele mesmo, o Jornalismo. É uma condição de existência – mas essa é uma opinião minha. Miriam apontou, ainda, a profissão como responsável por “olhar para onde o vento está indo”, uma alusão ao seu caráter único de observação, de enxergar aquilo e aqueles que mais ninguém consegue. É por isso que as obras dessas mulheres merecem o destaque não só literário, mas por sua função de construção da sociedade ao longo do tempo.
Você já se perguntou quais são as histórias escolhidas para serem contadas a nós? Ou, até mesmo, se a sua vida está na caixinha do que vai para as próximas gerações? Não queremos conhecer aquilo que nos arrepia a espinha, mas está lá, justamente no mais indigesto, a pulguinha que nos lembra, e relembra, e lembra. Está tudo entrelaçado. Sem a profissão que visita – e revisita – aquilo que se deseja esquecer, é impossível existir democracia e liberdade. E, assim, estaríamos fadados ao esquecimento de nós mesmos.