Nilo Vieira
O heavy metal passava longe de ser uma novidade no Brasil: o primeiro álbum do estilo (a estreia homônima do Stress) estava quase com quinze anos, bandas já embarcavam em turnês internacionais e o mercado especializado era sólido, indo de selos independentes à programas na MTV. No entanto, não é exagero afirmar que o ano de 1996 viu o metal brasileiro firmar seu nome, definitivamente, no cenário mundial.
Isso aconteceu graças aos dois maiores grupos nacionais do gênero, Sepultura e Angra, que lançaram seus álbuns mais conceituados, Roots e Holy Land. Apesar de pertencerem a vertentes distintas no heavy metal, possuem uma semelhança notável entre si: a abordagem tipicamente brasileira, tanto nas letras como no instrumental. Ao passo em que o Sepultura mesclou as cadências percussivas do Neurosis, o groove do Pantera e a simplicidade instrumental do famigerado nu metal (em ascensão na época), o Angra apostou em uma sonoridade erudita, que colocava arranjos orquestrais e o gingado brasilis do baião no mesmo caldeirão.
Além da ousadia musical, outro fator importante em ambos é a pesquisa histórica. Para a criação de Roots, o Sepultura passou três dias convivendo com índios da tribo Xavante em Mato Grosso, com direito à pintura corporal e carne de anta para o rango. Desse modo, os trechos tribais, presentes desde Arise (1991), não só ganharam mais espaço como soam mais orgânicos do que nunca, reforçando o peso das guitarras em afinação baixa (vide a clássica “Roots Bloody Roots”) ao mesmo tempo em que dão visibilidade à cultura indígena (a instrumental “Itsári”, “raízes” no idioma xavante, foi gravada com um canto de cura da tribo, ao vivo), nunca soando como meros adereços estéticos. Fora os Xavantes, outros convidados de peso marcam presença no álbum: Mike Patton (Faith No More), Carlinhos Brown, Jonathan Davis (Korn) e DJ Lethal (Limp Bizkit). Nas letras, temas introspectivos dividem o páreo com críticas sociais sobre a Amazônia (“Ambush”), a herança da ditadura militar (“Dictatorshit”) e a ode peculiar de “Ratamahatta”.
Já o Angra, além de uma imersão em um sítio no interior paulista, centrou seus esforços no folclore nacional e em histórias do Brasil pré-colonial para a concepção de seu segundo álbum. Como resultado, Holy Land soa ainda mais épico que seu antecessor, Angels Cry (1993), mas sem abrir mão de guitarras pesadas. Incluindo versões para uma missa de Giovanni Pierluigi da Palestrina e trechos de uma composição de Hermeto Pascoal, o disco não só confirma o talento da banda enquanto compositores, como também reafirma o rico ecletismo da música brasileira.
Por ironia do destino, esses dois ápices também marcaram as bandas de forma negativa. Em dezembro daquele mesmo ano, o frontman Max Cavalera deixa o Sepultura após sua esposa Glória, então empresária do grupo, ser demitida da função. O Angra ainda gravou mais um álbum com a formação de Holy Land, mas sem o mesmo brilho (e os brasileirismos). As tensões na banda também aumentaram, com o vocalista Andre Matos, o baixista Luis Mariutti e o baterista Ricardo Confessori deixando a banda anos mais tarde.
Em 2016, ambos os clássicos voltaram aos holofotes e renderam discussões calorosas. Logo no começo do ano, os irmãos Max e Iggor Cavalera anunciaram planos para uma turnê em comemoração aos 20 anos de Roots, executando o álbum na íntegra. A imprensa não tardou a procurar o atual líder do Sepultura, o guitarrista Andreas Kisser, para perguntar sua opinião. Embora tenha dado uma resposta negativa e descartado a possibilidade de eventos semelhantes com a formação atual, a banda deu sim maior atenção ao álbum para compor o repertório de sua última turnê, que inclusive passou por Bauru. Como de praxe, Max soltou o verbo com jornalistas, reiterando o clima de eterno conflito com seus ex-companheiros.
Já o Angra passou por uma situação ainda mais bizarra: a banda chamou os membros da época para uma turnê especial, mas Andre Matos anunciou que o faria com sua atual banda solo. O guitarrista Rafael Bittencourt, em seu perfil pessoal, foi até a publicação na página de Andre Matos e criticou a recusa ao convite do Angra; Matos depois negou que tivesse recebido qualquer proposta. Apesar das brigas, as duas turnês tomaram boa parte da agenda dos artistas neste ano, e ambas foram bem sucedidas. Já a empreitada dos irmãos Cavalera, que passou ontem pela capital carioca e faz show amanhã em São Paulo, vem recebendo críticas mistas, em especial pelo desempenho instrumental muito aquém dos tempos dourados.
Mesmo sob alvo de fofocas e rixas infantis, é bom perceber que, décadas depois, Roots e Holy Land sobreviveram até bem ao teste do tempo – embora urgentes, as letras do primeiro hoje soam um tanto simplistas, enquanto o maior número de baladas do segundo não é ileso de pomposidades – e permanecem como importantes documentos da música brasileira, abrindo portas para experimentalismos muito bem vindos em um nicho sonoro ainda bastante conservador no país. Nenhum álbum posterior, de qualquer projeto dos integrantes das duas bandas, chegou perto da consagração crítica e qualidade musical alcançada em 1996. Felizmente, porém, a conquista daquele ano ainda eclipsa qualquer vexame posterior. Como bem afirmou Noel Gallagher no documentário Supersonic: “as brigas e os tabloides são passageiros, o que prevalece é a música”.