Victor Pinheiro
De ilustração do mundo do boxe a filme motivacional projetado em corporações, Rocky – Um lutador (1976) representa um marco no cinema, sobretudo na produção de um dos personagens mais icônicos da história de Hollywood. Embora o roteiro do filme tenha sido escrito por Sylvester Stallone em apenas três dias e rodado em menos de um mês, a obra dirigida por John G. Avildsen, que também produziu Karate Kid (1984), foi premiada com os Oscars de melhor filme, melhor direção e melhor edição e ainda arrecadou mais de 200 milhões de dólares.
Tudo se deve ao pugilista azarão Chuck Wepner, que em 1975 se superou ao “sobreviver” a 15 rounds contra o mega favorito Muhammad Ali e ainda levar o lendário boxeador, falecido há quase dois meses, a knockdown. Apesar do esforço, Wepner perdeu a luta, porém inspirou Stallone a criar o personagem Rocky Balboa, um pugilista amador, solitário e desacreditado em si mesmo, que trabalha como cobrador de dívidas para o agiota Tony Gazzo (Joe Spinell) e mora num pequeno apartamento na Filadélfia.
O protagonista parece condenado a sua vida de poucas perspectivas, até que recebe uma improvável – e um pouco sem sentido – proposta para desafiar o campeão mundial dos pesos-pesados Apollo Creed (Carl Wheaters), em apenas cinco semanas. O desafio logo se torna a principal trama do enredo, dialogando com a idealização do Estados Unidos como a terra das oportunidades e transformando Rocky em um homem com as mesmas dificuldades do povo estadunidense, que, no entanto, soube aproveitar uma chance única para construir uma história de sucesso.
Essa retratação do protagonista semelhante a um cidadão comum estadunidense talvez tenha sido a grande sacada de Stallone para emplacar Rocky como um dos principais ícones de Hollywood. O ator e roteirista aproveita-se de uma sociedade norte-americana impactada pela guerra do Vietnã e o ápice do combate ideológico da Guerra Fria, para construir uma história em que fosse possível ao público se projetar sobre o personagem e direcionar suas vidas celebrando os ideais meritocráticos estadunidenses.
Além disso, a situação de Balboa antes do desafio remete ao fato do boxe ser representado, em grande parte, por atletas de origem humilde e no caso de amadores, a exemplo do próprio protagonista, competem para complementar a renda mesmo sofrendo diversos abusos morais, como ilustrado na cena de Rocky e seu adversário no vestiário depois da luta que inicia o filme.
Como lutador, Balboa é retratado com muitas deficiências técnicas, ignorando elementos típicos do boxe como a defesa em guarda, a esquiva e o jogo de pernas, dos quais ele parece se lembrar durante verdadeiros lampejos de consciência. Em contrapartida, o Garanhão Italiano apresenta o seu famoso gênio persistente e o queixo de aço, ambos bem representados pelos vários golpes que o lutador absorve enquanto sua cabeça parece descolar de seu pescoço.
As cenas de confronto podem ser criticadas por não serem lá muito fiéis à dinâmica do esporte, inclusive quando os lutadores parecem atacar em turnos, assemelhando-se a um jogo de RPG. Por outro lado, não se pode negar que essas representações ajudam a construir o teor de superação da trama. Afinal, Rocky não seria tão simbólico sem os olhos cerrados pelos quinhentos golpes que sofreu sem se defender e mesmo assim se levantar numa dramática trajetória até as cordas. Vale ressaltar que essas características perduram por toda saga, mas são alterada no spin-off Creed (2015), como discutido na resenha do filme.
Embora a história por trás de Balboa seja motivadora, a solidão e o desanimo compõem parte importante do papel do personagem. Ele aparece na maior parte sozinho, se limitando apenas a cumprimentos ligeiros com moradores do bairro e a rápidas conversas com seu amigo mais próximo, Paulie Pennino (Burt Young). Com o desenrolar da trama, percebe-se que Rocky foi um jovem pugilista de muito potencial, porém sem a companhia de pessoas que o incentivasse e acaba frustrado. O desânimo consequente de sua vida solitária faz o lutador apresentar certa indiferença quanto ao desafio contra Apollo por boa parte do filme.
Conforme Rocky conhece e se relaciona com outros personagens, o lutador passa a expressar mais auto-confiança e força de vontade. Adrian Pennino (Talia Shire), irmã de Paulie, é com certeza o exemplo que melhor ilustra esse processo. Ela acredita em uma vitória de Balboa e logo vira um dos principais combustíveis da motivação do lutador. Mas o relacionamento entre os dois não muda apenas o garanhão italiano. Adrian passa a ser mais comunicativa e auto confiante depois que se envolve com Balboa e inclusive confronta o irmão alcoólatra que vive a custo de seus serviços domésticos.
No entanto, vale lembrar que o roteiro chega a forçar a relação entre os dois de uma forma abusiva quando romantiza a cena agoniante após o primeiro encontro do casal em que Rocky insiste incansavelmente para Adrian entrar na sua casa e depois não a deixa sair até que ela lhe dê um beijo.
Além da namorada, apenas Mickey Goldmill (Burgess Meridith), ex-pugilista dono da academia Mighty Mick e treinador de Rocky, confia que ele pode dar trabalho ao campeão mundial. Em um primeiro momento, a relação entre os dois é conturbada, no entanto, após resolverem suas desavenças o acompanhamento de Mick é fundamental para a encenação dos treinamentos do pugilista.
As cenas de preparação de Rocky representam parte importantíssima do filme. Elas são essenciais para expor o trabalho duro, a dedicação e força de vontade que configuram o plano de fundo da trama. A faixa Gonna Fly Now, composta por Bill Conti, cai como uma luva nas encenações e faz parecer que a motivação de Balboa está fervendo no seu limite. Se não bastasse, as corridas de Rocky pelas ruas da Filadélfia ainda fazem menção ao treinamento de um dos maiores pugilistas de todos os tempos e eterno rival de Ali, Joe Frazier.
Se o Garanhão Italiano exala dedicação, Apollo é retratado no filme desleixado e orgulhoso. O campeão mundial dos pesos-pesados está imerso no mundo burocrático do boxe, escolhendo seus adversários e procurando soluções de marketing para sua luta e não se preocupa com seu rival acreditando ter a vitória garantida. Na nítida inspiração em Chuck Wepner x Muhammad Ali, Rocky logo tira o sorriso do rosto de Apollo ao levá-lo a knockdown ainda no primeiro round. Assim, a obra tece críticas ao universo comercial do boxe e questiona as virtudes do orgulho em grandes atletas do esporte.
Rocky foi a criação que deu a grande chance para carreira de Stallone, que, por sua vez, soube agarrá-la muito bem. O filme escrito pelo ator americano, mesmo que falhe em aspectos técnicos, têm suas qualidades ao trazer o boxe pro centro das atenções junto a uma ideologia compátivel com o imaginário hollywoodiano da época. Além disso, seu maior legado é justamente o protagonista que nomeia a saga e toda a inspiração acerca dela.
No entanto, depois do sucesso e o futuro em aberto do protagonista no final do filme, dificilmente a revanche contra Creed seria recusada em Hollywood. Ainda que não seja tão bem aclamado pela crítica, Rocky II (1979) se espelha nos moldes do primeiro filme e volta a desenvolver o espírito competitivo do lutador, ao mesmo tempo em que já aponta algumas mudanças de personalidade do personagem. Em Rocky lll (1982), Balboa já se assemelha com o Apollo do primeiro filme. Agora campeão mundial dos pesos-pesados, o Garanhão Italiano é mais convencido e Mick passa a escolher a dedos seus adversários, precisando que Clubber Lang (Mr. T) faça ele se lembrar de suas origens e de todo trabalho pesado que o colocou no topo do esporte.
Já Rocky IV (1985) serve de ferramenta ideológica na Guerra Fria. A morte de Apollo traz a dramaticidade à série e direciona toda a trama. Balboa deve vingar seu antigo amigo e rival dentro dos ringues contra um malvado comunista soviético, que parece ter matado Creed de propósito e sem piedade. O enredo deu tão certo que o filme arrecadou mais do que o próprio Rocky, de 1976.
Nos dois filmes seguintes, Rocky V (1990) e Rocky Balboa (2006), Stallone abusa de seu personagem de ouro e sua motivação escrevendo roteiros péssimos, forçando lutas completamente sem sentido como se tivesse pena de enfim aposentar o Garanhão Italiano. A morte de Adrian no último filme poderia oferecer uma oportunidade para Syl emplacar Rocky como um bom e complexo lutador aposentado, mas o ator-diretor preferiu por o cinquentão para apanhar mais um pouco, forçando um discurso motivacional. Em contrapartida, Ryan Coogler mostra em Creed (2015) o potencial de Balboa fora dos ringues que Stallone se recusou a aproveitar. Dessa forma, mesmo como coadjuvante, não é absurdo pensar que Rocky Balboa ainda tenha muito para lutar, mas fora dos ringues, é claro.