Nilo Vieira
As expectativas para a estreia de “O Regresso” eram enormes: o diretor era ninguém menos que o grande vencedor do Oscar 2015 Alejandro Iñárritu, e o protagonista do longa-metragem, Leonardo DiCaprio, muito querido pelo público cinéfilo. Antes mesmo da estreia no circuito comercial dos Estados Unidos, o site Consequence of Sound elegeu a performance de DiCaprio no filme como a melhor de sua carreira e, em entrevista ao Financial Times, Iñárritu declarou que sua nova obra-prima merecia ser vista em templos e que não se encaixava em nenhum gênero cinematográfico – em especial, rejeitou a classificação de “O Regresso” como um faroeste revisionista. O hype estava formado, e com força total.
Ambientado no norte dos EUA no ano de 1823, “O Regresso” conta a história de Hugh Glass, guia de uma expedição que caça animais para a venda de suas peles. Após seu grupo ser atacado por índios, Glass e sua trupe se veem forçados a planejar outra rota de volta ao forte onde estavam estabelecidos. Logo no começo do novo caminho, um urso pardo monstruoso faz Glass de gato e sapato, e este fica então imóvel e incapacitado de falar, tamanho o estrago feito em seu corpo. A partir de então, o espectador acompanhará o mutilado Glass em sua jornada tortuosa por entre vastos territórios e devaneios com sua finada esposa índia – o típico processo de provação do herói da história.
Curiosamente, é no período “mudo” da trama em que os elogios feitos a DiCaprio se mostram justificados. À pedido do próprio ator, Iñárritu suprimiu vários diálogos do roteiro original e se percebe que não foi uma opção arriscada: Leonardo se entrega completamente ao papel, entregando expressões de angústia e sofrimento tão críveis que assustam, sem nunca cair em exageros. A trilha sonora sombria (assinada pelos experientes Ryuichi Sakamoto e Alva Noto e com colaborações de Bryce Dressner, membro da banda The National), somado à tática de deixar os sons ambientes darem o tom inóspito à trajetória do protagonista, muito colabora para esse trecho ser verdadeiramente marcante. Quanto aos períodos “falados”, merecem destaque a cena onde Glass abre a barriga do próprio cavalo para usar como saco de dormir e a tensa sequência final.
Apesar de Iñárritu negar, vários requisitos básicos de filmes de faroeste estão escancarados em “O Regresso”: o personagem redneck arrogante e agressivo, a mocinha raptada, uma recompensa polpuda em dinheiro, as tradicionais trocas de tiros com espingardas e, como de praxe, uma trama baseada em vingança. O diferencial está no tratamento dispensado aos personagens indígenas que, diferente de obras retrógradas como o péssimo “Rastros de Ódio” (1956), não são retratados como meros selvagens que atazanam a vida dos exploradores. Iñárritu, nascido no tão explorado México, faz questão de enfatizar que os índios sofrem todo tipo de violência – de ofensas verbais a escravidão sexual – da parte dos povos brancos, e que toda agressão é consequência, defesa legítima após tanto sofrimento.
As semelhanças técnicas com outras obras do cinema não param por aí: a imagética abstrata é muito similar a do trabalho de Terrence Malick (a direção de fotografia de seu filme “Árvore da Vida” (2011) é assinada pelo mesmo Emmanuel Lubezki de “O Regresso”), a cena onde um índio constrói uma cabana em meio à nevasca para abrigar a si próprio e Glass parece ser referência ao ápice da história real registrada por Akira Kurosawa em “Dersu Uzala” (1975), os tons escuros obtidos em florestas fechadas remetem à “Vá e Veja” (1985). No entanto, a similaridade mais discutida se dá na opção pelos planos-sequências focando em paisagens naturais: seriam herança ou mesmo plágio da marca registrada do russo Andrei Tarkovsky? Um designer gráfico russo publicou o vídeo abaixo em seu Instagram, comparando as imagens das películas:
Apesar de aparentar certo conspiracionismo em algumas partes, é inegável a semelhança estética – particularmente, noto que “O Regresso” herdou muitos traços do último filme de Tarkovsky, “O Sacrifício” (1986), apesar deste ser pouco explorado no vídeo acima. A comparação entre os dois diretores explicita um dos pontos fracos da nova empreitada de Iñárritu: se prolongar desnecessariamente. Enquanto o uso de demorados planos-sequência era um elemento essencial para as narrativas de complexo cunho psicológico de Tarkovsky, em “O Regresso” – assim como em seu superestimado antecessor “Birdman” -, essa opção parece se dar mais por virtuosismo técnico do que por substancialidade. Não há como negar que as paisagens capturadas pela câmera são belíssimas, mas a partir da vigésima tomada filmando árvores após meio diálogo, o espectador mais crítico já começa a se cansar. Além disso, Iñárritu parece ensaiar takes simbólicos e passagens oníricas como fazia seu mestre russo, mas sem sucesso e, a partir de certo ponto no filme, essas cenas parecem querer disfarçar um roteiro nem tão potente.
Aliás, se faz imprescindível questionar alguns rombos na história, mesmo esta sendo baseada em fatos reais. Em sã consciência, como pode um capitão deixar um sujeito mal encarado – o odioso John Fitzgerald (Tom Hardy), que inclusive não se mostrou amigável à Glass uma única vez na trama toda – responsável por um ferido, e ainda oferecer dinheiro pelo serviço? Outra: como esse mesmo capitão, inteligente que só ele, com trocentos companheiros disponíveis e prontos para o combate, simplesmente aceita sair sozinho com um homem ferido até as pontas dos pés atrás de um inimigo armado? E o final aberto, apesar de digno com quem foi aporrinhado nas duas horas e meia de filme, deixa muito a desejar, batendo na mesma tecla já esgotada há pelo menos quarenta minutos antes do desfecho.
O saldo final de “O Regresso” é misto. Em quesitos técnicos, não há muito o que reclamar, e quem assiste filmes como mero passatempo dificilmente sairá insatisfeito. Contudo, um olhar mais crítico revela falhas cruciais, e a obra acaba sendo rasa demais para ser classificada como filme de arte (termo péssimo), ao mesmo passo em que se estende em demasia para cair na fileira dos blockbusters – é uma fórmula que agrada muito a academia, que muito provavelmente irá agraciar “O Regresso” com várias estatuetas do Oscar – do mesmo modo que aconteceu com “Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)”, que também funcionava nesses moldes. Dessa forma, acaba como uma experiência que vale a pena ser vista, mas apenas uma única vez.