Maria Clara Alves
Desde Outubro de 2009, o curso da história dos animes foi alterado com a estreia da primeira temporada de Que Chegue a Você: Kimi ni Todoke, que ganhou vida em 2d a partir do estúdio de animação Production I.G. O título de Shiina Karuho inaugurou um jeito novo e leve de contar histórias sobre suas personagens com um romance inocente, além de ter esclarecido, de uma vez por todas, que não há nada de errado em não ser perfeito. O ritmo do enredo guia o espectador a oscilar entre os sentimentos de leveza e frustração, e a constância desses conflitos na animação envolve o suficiente para maratonar o dia todo. Não à toa, a série, baseada no mangá Kimi ni Todoke, é sinônimo de nostalgia nos corações do público que experienciou as fases da adolescência junto com o elenco, além de ser uma opção de anime de conforto para todas as horas.
Logo de início, o despertar da protagonista Sawako Kuronuma (Mamiko Noto) aconteceu na sua primeira interação com Shouta Kazehaya (Daisuke Namikawa), um garoto de sua turma que admirava de longe pelas suas habilidades sociais e a maneira que todos pareciam idolatrá-lo. Isso porque, em uma vida inteira vivendo como coadjuvante dentro de sua própria história, o que a jovem de 15 anos mais desejava, antes de qualquer outra coisa, era pertencer. A virada de chave da personagem foi a partir do momento em que Shouta – enquanto representação de tudo que Sawako se inspirava – reconheceu a sua presença e a tratou de forma respeitosa, sem caçoar ou fugir dela.
A série faz jus à sua classificação de shoujo por retratar temas do cotidiano misturados com uma colher de sensibilidade e pitadas de profundidade, que são rapidamente reconhecidas pelo público alvo femimino por abordarem temas comuns que persistem até a vida adulta: os problemas de autoestima, timidez, as dificuldades de comunicação, o primeiro amor e o medo do desconhecido. A própria protagonista possui um histórico só seu: o fato de ter sido alvo de rumores desde a infância, por ser parecida com a personagem Sadako, de Ring. Como resultado, Sawako se tornou uma menina isolada e introspectiva, ao mesmo tempo que ansiava por amigos e interações normais com as pessoas.
A cafeína da adaptação é o seu slowburn – em outras palavras, as lentas idas e vindas na evolução das personagens, que mostram seus lados confusos e intensos enquanto se descobrem como adolescentes. O enredo da história se aproxima de um slice of life não somente por ser ambientado em um colégio de ensino médio japonês na década de 1990, mas também por acompanhar os pensamentos e as rotinas de Sawako e Kazehaya – que além de estudantes, são amigos, irmãos e filhos de outras pessoas – cujas histórias são tão reais que cativam.
A trajetória de Sawako, apesar de contínua, é próxima da realidade por não ser linear. Ela também se destaca como uma protagonista charmosa e carismática pela sua vulnerabilidade, o que faz com que ela ganhe, rapidamente, um lugar afetuoso no coração do espectador. A personagem comete erros, sim, como qualquer outro adolescente que está se descobrindo, e é isso o que a faz ser um respiro de ar fresco entre tantas outras, que, por outro lado, beiram à perfeição. Nesse contexto, a lentidão no desenrolar dos acontecimentos é um recurso precioso para que o espectador entenda as camadas da jovem e consiga se sensibilizar e mergulhar de cabeça na narrativa a partir do seu ponto de vista; algo um pouco ingênuo, mas unicamente de Kuronuma.
Os episódios da série dissecam traços diferentes da garota para o público conforme ela se descobre um pouco mais: o seu lado alegre e sorridente, sua proatividade, atenciosidade e senso de justiça. Por isso, o desabrochar de Kuronuma tem um sabor adocicado e refrescante. Cada vez mais se descobre que, por trás da feição fechada, Sawako é somente mais uma adolescente que, como todas as outras, está à procura do seu lugar no mundo. Embora os rumores persistam, ela consegue se mostrar como uma garota genuína e verdadeira quando lhe é dada a oportunidade. Ela se aproxima de Ayane (Miyuki Sawashiro) e Chizuru (Yūko Sanpei), com quem passa a dividir os abraços, lanches e manhãs, como exemplos que ultrapassam a ficção de amigas para a vida toda.
Exemplar como aluno, atleta e irmão mais velho, Shiina explora as vulnerabilidades e o que podem ser interpretados como traços ‘questionáveis’ de Kazehaya no desabrochar de sua dinâmica com Kuronuma. A falta de comunicação entre as personagens – como amigos e, depois, como casal – é uma questão recorrente na trama, o que leva a desentendimentos e escalada de conflitos e sentimentos, como a insegurança e o ciúme. Nesse caso, a lentidão dos acontecimentos, apesar de frustrante, contribui para que o espectador permaneça atento e queira consumir mais e mais episódios até chegar a hora do romance.
O trabalho da equipe de animação, dirigida por Yuka Shibata, entrega traços suaves e uma paleta de cores rica em tons claros, vibrantes e não muito contrastantes entre si, conferindo ar de aconchego à história e aos seus personagens. Ainda que tenham algumas cenas permeadas de cores mais fortes e escuras, principalmente para criar um efeito de terror sobre Sawako, por exemplo, não há perda do teor cômico ou do ar de leveza e ‘fofura’. O tom da série consegue tratar de assuntos existenciais e relativos à autoestima ao mesmo tempo que mantém o clima despojado e divertido condizente com a faixa etária de seus personagens, e a aparição dos chibis é sempre bem-vinda como uma eficiente quebra de gelo.
Com o roteiro de Tomoko Konparu e direção de Hiro Kaburagi, a adaptação televisiva conseguiu transformar o que seriam narrativas corriqueiras do ensino médio em arcos complexos de desenvolvimento e superação, ancorados nos traços de personalidade que são desenvolvidos para além do casal de protagonistas. No mais, pode-se dizer que a mangaká, juntamente ao elenco de vozes do anime, conseguiram dar vida com maestria e respeito às limitações de cada personagem em Que Chegue a Você. Além de Sawako e Kazehaya; Ayane, Chizuru e Ryuu (Yūichi Nakamura) também tiveram o seu lugar ao sol, embora seus arcos tenham sido explorados com maior profundidade somente a partir da terceira temporada do anime.
O crescimento de Sawako é gradual. Ela, paralelamente a uma adolescente com questões emocionais e de autoestima do mundo real, age conforme o coração e permanece fiel aos seus princípios, mesmo com todas as suas transformações. Acompanhar a jornada desta protagonista tão complexa e singular exige, também, uma autorreflexão por parte do público, para que se consiga entendê-la e compreender a essência da adaptação em si. Entre o ficcional e real, testemunhar o desenvolvimento da jovem mostra que as aparências enganam e impressões estereotipadas podem levar a estrondosos ruídos de comunicação.
Os ensinamentos de Que Chegue a Você: Kimi ni Todoke permanecem relevantes e enriquecedores, não possuindo fronteiras de idade ou gênero. Justamente por ter ido além da superfície romântica, a série trouxe lições valiosas sobre dinâmicas humanas e desenvolvimento pessoal com a pitada adequada de delicadeza, importante para não tornar a história maçante. O título de Shiina Karuho conseguiu, então, consolidar o seu nome na indústria do entretenimento japonês.
https://youtu.be/yU8PnQyvKB8?feature=shared