Felipe Monteiro
Um dos momentos mais conturbados e intensos de nossas vidas é quando decidimos experimentá-la por nossos próprios sentidos e regras (ou a falta delas). Quando saímos da passividade do ser, onde somos mais receptores das vivências e dos modos por meio daqueles que nos tutoram, para entrarmos em uma atividade do ser – na qual somos mais produtores de nossas experiências, passamos a vivenciar por nós o mundo. Uma guinada da “teoria à prática”, uma pequena revolução que nos acomete loucamente em frenesi de emoções, hormônios, energia, rebeldia.
Queremos questionar as normas, coloca-las à prova, nos livrarmos delas e criarmos as nossas. Questionamentos sobre nossa identidade e nosso sentido no mundo são exaltados em nosso peito, abrindo um abismo que nos separa de um estado antigo de existência; somos rondados por insegurança, medo e desconhecido, um lugar incomum em que poucas são as cordas que restaram do outro lado e ainda chegam até nós. É nesse precioso momento da juventude que se instala Lotus 6, narrando os conflitos de Saul, um jovem que acaba de se encontrar do outro lado do abismo.
Saul está em busca, pelo mundo. Ele é o louco que não se sente correspondido pelo meio, está inserido em um contexto de morte ou não existência e quer se libertar, conhecer a si e o que lhe rodeia, quer irromper para um contexto de vida ou existência. A personagem está entre o ser e o não ser. Ele ainda não o é, tendo em vista que justamente busca conhecer a si, entender seus vícios e tendências, enxergar-se na alteridade do outro como individualidade e nos outros como coletividade para então encontrar-se e passar a ser, porém não é um não-ser total, já que está em movimento de busca e essa ação em si já é uma forma de meio-existir.
O conceito que a peça apresenta para traduzir esse conflito da personagem é o de normose, uma denominação de alguns psicólogos para a doença de ser normal, ou seja: o sujeito se aflige e entra em desequilíbrio por estar inserido em um contexto social cujas normas e ritos não condizem com o modo de ser do sujeito.
Para narrar esses processos, a peça se divide em duas esferas. A primeira, que se apresenta logo de início, seria a esfera externa; nela, os arquétipos sociais são representados – são as normas da sociedade e os caminhos tidos como alternativos que fazem parte da busca de Saul, mas também espaços de diálogo com o público. É nessa esfera que vemos cenas com a do Tribunal das Redes Sociais, em que as escolhas fora do senso comum são julgadas pelas pessoas em seus anonimatos, reproduzindo discursos de ódio e aplicando sentenças. Essa e outras cenas que ocorrem na esfera externa buscam um contato com nossa contemporaneidade, trazem problemáticas e elementos do cotidiano com uma certa poesia, são cenas deslocadas da narrativa principal, mas ainda assim atreladas intrinsecamente ao foco temático da normose.
A segunda esfera seria a interna, e nela conhecemos Saul. Sua história se apresenta descolada de um tempo-espaço preciso, como o rompimento psicológico da estética modernista, e presenciamos o psicológico da personagem em muitos âmbitos, desde sua relação familiar e a problemática desse desligamento com o lar até a terapia, meditação, uso de drogas, sexualidade e outros elementos que estão no labirinto mental do jovem. As duas esferas são distintas, porém conectadas na narrativa e na estética.
As cenas carregam em si uma poética que exprime a confusão, a loucura e até aspectos surreais. Elementos como razão e espiritualidade confrontam-se com instintos e vícios materializados, como flores de lótus e primatas. Há sempre uma dualidade que parece bailar um tango de morte, uma luta é travada sempre, em todos os cenários. Porém, nessa tentativa de alegorizar elementos da sociedade e da subjetividade da personagem, a peça peca em se manter fixa a estereótipos caricatos; algumas estruturas poderiam sair dos moldes e realmente se aproximarem da complexidade que é a realidade. O próprio Saul é o estereótipo da busca jovem e se detém nisso, uma planificação.
Em meio a belas cenas, como o conflito quase hamletiano da consciência de Saul – em que dois polos de sua psique ganham corpo, prendem a personagem em uma trama de fios elásticos e começam uma disputa de posições ideológicas enquanto bailam e enrolam a personagem em confusão de teias (e ideias)-, temos também algumas cenas que poderiam ser melhor trabalhadas, como exemplo a cena inicial do tribunal e também a cena dos quadros de família, sendo esta última bela em sua atuação, mas os quadros pendurados poderiam ser melhor utilizados.
Outro aspecto de conflito existente é o fato de que fica perceptível pelo menos dois grupos de atores, um com mais experiência e domínio corporal e outro com nem tanta experiência, mas nada que desvalorize a peça, muito pelo contrário, compõem de maneira sutil a urdidura da obra. Com todos esses elementos, Lotus 6 nos traz reflexões sobre sociedade, humanidade, sexualidade, identidade e sobre o tema central da normose, com uma certa beleza estética e em uma linguagem jovem.
Yeahhhhhh! Que bom Felipe, poder ler uma crítica teatral com substância e numa cidade que não tem essa tradição. Quero conversar melhor com você sobre,se for possível. Abraço solar!
Obrigado pelo trabalho, muito bom saber do seu olhar sobre o trabalho!