Um baile psicológico e surreal contra a normalidade em Lótus 6

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Foto: Hender Medina

Felipe Monteiro

Um dos momentos mais conturbados e intensos de nossas vidas é quando decidimos experimentá-la por nossos próprios sentidos e regras (ou a falta delas). Quando saímos da passividade do ser, onde somos mais receptores das vivências e dos modos por meio daqueles que nos tutoram, para entrarmos em uma atividade do ser – na qual somos mais produtores de nossas experiências, passamos a vivenciar por nós o mundo. Uma guinada da “teoria à prática”, uma pequena revolução que nos acomete loucamente em frenesi de emoções, hormônios, energia, rebeldia.

Queremos questionar as normas, coloca-las à prova, nos livrarmos delas e criarmos as nossas. Questionamentos sobre nossa identidade e nosso sentido no mundo são exaltados em nosso peito, abrindo um abismo que nos separa de um estado antigo de existência; somos rondados por insegurança, medo e desconhecido, um lugar incomum em que poucas são as cordas que restaram do outro lado e ainda chegam até nós. É nesse precioso momento da juventude que se instala Lotus 6, narrando os conflitos de Saul, um jovem que acaba de se encontrar do outro lado do abismo.

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Foto: Hender Medina

Saul está em busca, pelo mundo. Ele é o louco que não se sente correspondido pelo meio, está inserido em um contexto de morte ou não existência e quer se libertar, conhecer a si e o que lhe rodeia, quer irromper para um contexto de vida ou existência. A personagem está entre o ser e o não ser. Ele ainda não o é, tendo em vista que justamente busca conhecer a si, entender seus vícios e tendências, enxergar-se na alteridade do outro como individualidade e nos outros como coletividade para então encontrar-se e passar a ser, porém não é um não-ser total, já que está em movimento de busca e essa ação em si já é uma forma de meio-existir.

O conceito que a peça apresenta para traduzir esse conflito da personagem é o de normose, uma denominação de alguns psicólogos para a doença de ser normal, ou seja: o sujeito se aflige e entra em desequilíbrio por estar inserido em um contexto social cujas normas e ritos não condizem com o modo de ser do sujeito.

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Foto: Hender Medina

Para narrar esses processos, a peça se divide em duas esferas. A primeira, que se apresenta logo de início, seria a esfera externa; nela, os arquétipos sociais são representados – são as normas da sociedade e os caminhos tidos como alternativos que fazem parte da busca de Saul, mas também espaços de diálogo com o público. É nessa esfera que vemos cenas com a do Tribunal das Redes Sociais, em que as escolhas fora do senso comum são julgadas pelas pessoas em seus anonimatos, reproduzindo discursos de ódio e aplicando sentenças. Essa e outras cenas que ocorrem na esfera externa buscam um contato com nossa contemporaneidade, trazem problemáticas e elementos do cotidiano com uma certa poesia, são cenas deslocadas da narrativa principal, mas ainda assim atreladas intrinsecamente ao foco temático da normose.

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Foto: Hender Medina

A segunda esfera seria a interna, e nela conhecemos Saul. Sua história se apresenta descolada de um tempo-espaço preciso, como o rompimento psicológico da estética modernista, e presenciamos o psicológico da personagem em muitos âmbitos, desde sua relação familiar e a problemática desse desligamento com o lar até a terapia, meditação, uso de drogas, sexualidade e outros elementos que estão no labirinto mental do jovem. As duas esferas são distintas, porém conectadas na narrativa e na estética.

As cenas carregam em si uma poética que exprime a confusão, a loucura e até aspectos surreais. Elementos como razão e espiritualidade confrontam-se com instintos e vícios materializados, como flores de lótus e primatas. Há sempre uma dualidade que parece bailar um tango de morte, uma luta é travada sempre, em todos os cenários. Porém, nessa tentativa de alegorizar elementos da sociedade e da subjetividade da personagem, a peça peca em se manter fixa a estereótipos caricatos; algumas estruturas poderiam sair dos moldes e realmente se aproximarem da complexidade que é a realidade. O próprio Saul é o estereótipo da busca jovem e se detém nisso, uma planificação.

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Foto: Hender Medina

Em meio a belas cenas, como o conflito quase hamletiano da consciência de Saul – em que dois polos de sua psique ganham corpo, prendem a personagem em uma trama de fios elásticos e começam uma disputa de posições ideológicas enquanto bailam e enrolam a personagem em confusão de teias (e ideias)-, temos também algumas cenas que poderiam ser melhor trabalhadas, como exemplo a cena inicial do tribunal e também a cena dos quadros de família, sendo esta última bela em sua atuação, mas os quadros pendurados poderiam ser melhor utilizados.

Outro aspecto de conflito existente é o fato de que fica perceptível pelo menos dois grupos de atores, um com mais experiência e domínio corporal e outro com nem tanta experiência, mas nada que desvalorize a peça, muito pelo contrário, compõem de maneira sutil a urdidura da obra. Com todos esses elementos, Lotus 6 nos traz reflexões sobre sociedade, humanidade, sexualidade, identidade e sobre o tema central da normose, com uma certa beleza estética e em uma linguagem jovem.

2 comentários em “Um baile psicológico e surreal contra a normalidade em Lótus 6”

  1. Yeahhhhhh! Que bom Felipe, poder ler uma crítica teatral com substância e numa cidade que não tem essa tradição. Quero conversar melhor com você sobre,se for possível. Abraço solar!

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