Ponte dos Espiões: Crítica ao estado e Exaltação do indivíduo

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Eli Vagner F. Rodrigues

A crítica cinematográfica costuma classificar os filmes com temática política de Steven Spielberg como “drama histórico de fundo humanista”. Paralelamente a estes denominados filmes “sérios” do diretor (A Lista de Schindler, Amistad, O resgate do Soldado Ryan, Munique, Lincoln) os críticos elencam os, por eles chamados, “Bluckbusters de apelo pop” (Indiana Jones, Jurassic Park, Inteligência Artificial, Minority Report). Nenhuma das duas classificações faz jus à obra de Spielberg. No caso de seu mais recente filme, “Ponte dos espiões”, que concorre ao oscar de melhor filme este ano, a obra foi tratada como um “thriller sobre a guerra fria”. Em geral, após estas classificações genéricas,  apresenta-se uma sinopse do filme pontuada com algumas expressões do momento. Esta desconsideração, ou mesmo ignorância, dos elementos mais complexos dos filmes se deve a vários fatores: público, espaço, dinâmica de consumo dos meios de comunicação etc. O filme de Spielberg vai muito além dos limites destas classificações.

Além da já esperada competência técnica e cenográfica, características das produções do diretor, o enredo proporciona reflexão, ironia, crítica social e política a cada cena. Com um roteiro escrito por Matt Charman e pelos irmãos Cohen alguma comicidade e ironia já eram esperadas, e essas são características que realmente não faltam ao filme. Contudo, a principal qualidade da obra é apontar para o relativismo político e para a crítica ao poder.

A trama começa quando um advogado, o cidadão norte-americano James Donovan (Tom Hanks), é convocado pelo governo para defender um russo, Rudolf Abel (Mark Rylance), suspeito de espionagem. A proposta de defesa feita a Donovan, isto fica claro logo no início do filme, é mera formalidade, parte de uma estratégia americana de conferir ao seu sistema jurídico uma imagem de perfeição e imparcialidade. Nas palavras do juiz da suprema corte americana “O acusado deve ter um julgamento justo, perfeito, desde que seja julgado culpado”.

O elemento dramático inesperado é que o advogado, contrariamente a todo o sistema jurídico e de propaganda do estado, leva a sério a premissa de defender o acusado com base nas garantias, que não são poucas, concedida pela constituição americana a todo indivíduo sob o qual paira suspeita e não a prova de um crime.

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A partir desta inesperada reação de um cidadão americano, que, obviamente, vai incorporar o herói do filme, alguns problemas mais complexos entram em jogo. Donovan vai, em plena guerra fria, suspender seus juízos patrióticos em favor de um ideal de justiça superior. Com este contexto Spielberg consegue desenvolver um interessante questionamento sobre a relação do estado com o indivíduo tendo como pano de fundo a questão da liberdade, em várias perspectivas. As razões de estado estariam acima da lei, ou a lei, no caso a constituição dos EUA, deveria ser soberana em qualquer caso por garantir os direitos fundamentais a qualquer indivíduo (ou cidadão)? Esta questão acompanha toda a trama e funciona como pano de fundo para diversas críticas do diretor à cultura norte-americana.

A trama se completa quando o piloto (Gary Powers) de um avião-espião americano é preso na Alemanha. É a vez dos soviéticos entrarem em cena. A Alemanha dividida será o palco de uma tentativa de troca de agentes, mediada por Donovan. Os americanos solicitam ainda a extradição de um jovem americano que teve a brilhante ideia de estudar a economia soviética numa Berlim ocupada em plena guerra-fria. Donovan vai insistir no resgate do jovem estudante, pouco interessante para a CIA e para o governo americano, acentuando a tensão sempre presente entre os interesses do estado e os sentimentos do cidadão.

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O fato de o personagem central ser um advogado, um profissional liberal, também é fundamental para a mensagem que o diretor sustenta. Um detalhe da atuação profissional do personagem dá um tom ainda mais liberal ao seu perfil. Donovan atua na área de seguros, investiga e negocia de acordo com regras estabelecidas no mundo comercial. Neste setor quem dá as regras é o mercado e não instituições pouco flexíveis ou ideais dogmáticos, isto é, o mercado já está regulado por suas próprias leis (naturais ou não) e ele é o princípio que norteia as ações cotidianas. Donovan tem ainda, em seu currículo, uma participação no tribunal de Nuremberg.  Este aspecto permite Spielberg introduzir a questão da suposta inocência de quem comete crimes contra a humanidade, ou contra uma comunidade, por cumprir ordens de seu estado.

O fato que tornou mais famoso este dilema jurídico foi o caso Eichman, oficial nazista responsável pela logística da solução final em relação aos judeus na segunda guerra mundial. Este caso foi relatado e analisado por Hanna Arendt na obra “Eichman em Jerusalém”. Nesta obra, Arendt desenvolve o conceito de “banalidade do mal”. Para a filósofa, o mal não seria uma essência característica da natureza humana. O mal poderia ser manifesto em atos políticos e históricos aparentemente neutros do ponto de vista ético. Neste sentido, ele seria produzido por homens comuns sem reflexão sobre o que fazem e se efetivaria em espaços institucionalizados que esconderiam uma malignidade latente. Este espaço de atuação, para Spielberg, é o estado e seu aparato burocrático, jurídico, repressor.

No caso do espião julgado pelo sistema americano, a acusação, em si, é gravíssima, espionagem. Porém, o homem, Abel, seria de outro ponto de vista, um bom espião, um bom soldado, um cidadão leal ao seu estado. Spielberg faz questão de realçar este aspecto através de traços do personagem que de saída conquistam a simpatia do espectador. Abel é calmo, equilibrado e sensível, fala pouco e tem dotes artísticos. Do outro lado, Donovan é idealista e persistente e não parece ceder a nenhuma circunstância de seu cargo, de sua posição. A empatia entre dois cidadãos acontece naturalmente, este aspecto reforça a opção do espectador pelo indivíduo, em detrimento das razões do estado. Um americano e um russo desenvolvendo uma amizade inusitada na guerra fria sugere claramente que o inimigo é o estado e não o ser humano. Esta interpretação se reforça com a sugestão de que o futuro dos espiões em seus países natais, caso sejam trocados, não será de um acolhimento festivo.

O cidadão do estado liberal não sabe se o estado lhe acolhe com o mesmo entusiasmo do que quando ele estava próximo de ser um herói. Do outro lado o aparato repressor do estado soviético não seria benevolente com seu espião que, no mínimo, cometeu algum erro estratégico, pois foi preso, e, mesmo aparentemente não tendo revelado nada ao inimigo pairará sobre ele uma longa suspeita.

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Além destas questões que envolvem filosofia e psicologia das massas, Spielberg acrescenta questões originadas pela consideração da “Quarta Emenda”. A Quarta Emenda  foi introduzida na Carta dos Direitos. Refere-se à proteção contra buscas e apreensões arbitrárias e foi instituída como resposta aos abusos do controverso writ of assistance, um tipo de mandado geral de busca emitido pelo governo colonial britânico e que foi uma importante fonte de tensão na América pré-revolucionária. A emenda proíbe a busca e apreensão sem que haja motivo razoável e mandado judicial baseado em causa provável.

De acordo com a Quarta Emenda, busca e apreensão (incluindo prisão) devem ser de alcance limitado, baseando-se em informações específicas transmitidas ao tribunal emissor, geralmente por um agente da justiça.

No caso de prisão de espiões (hoje de terroristas) o estado sempre se depara com este problema. Não foi diferente no caso do filme. Donovan, como “bom advogado” vai lutar até o fim pelos direitos que a constituição estadunidense garante a todos os indivíduos presos em território americano.

Deste contexto, Spielberg explora criticamente outras características da cultura americana, que são comuns a todas as sociedades, como o fanatismo, a paranoia social, a xenofobia e a imbecilidade da opinião pública.

Aos que acusam Spielberg de “reinventor do escapismo” com seu “entretenimento família” pode-se conceder que o diretor trabalha com um ideal heroico em Ponte dos Espiões. No entanto, a construção do personagem central do filme, o advogado James Donovan, está baseada em uma concepção de heroísmo de cidadão comum, que tem como garantia apenas a constituição (ideais) e não super-poderes. A esfera dos poderes é direcionada aos princípios e à superação individual (coragem). Spielberg aposta em ideais que só podem ser defendidos pelo indivíduo, pois, principalmente em situações de conflito, não é natural ao estado o princípio da liberdade e da justiça, mesmo em um estado democrático.

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