Nenhum pôster é grande o suficiente pra esse filme
Nilo Vieira
De modo bastante rudimentar e generalizante, pode-se apresentar a obra do cineasta sueco Ingmar Bergman a um leigo como um “surrealismo cáustico do cotidiano”. Seus filmes propõem reflexões existencialistas através de metáforas incômodas e por vezes demoníacas, e a capacidade de extrair e expandir as mais diversas hipóteses sobre determinado tema em diálogos ásperos ou mesmo aparentemente banais (sempre retradados com fluência assustadora) é a espinha dorsal de seu trabalho.
No entanto, o espectador mais atento há de reparar que Persona é uma exceção a esse modus operandi. Claro, as falas estão ali e a trilha sonora, geralmente um adereço minimalista bergmanesco, é essencial ao tom experimental do longa-metragem. Mas o grande protagonista na história do conflito envolvendo a atriz Elisabet Vogler (Liv Ullmann) e a enfermeira Alma (Bibi Andersson) é justamente ele, o silêncio.
Após ter um colapso mental, Elisabet simplesmente para de falar e vai parar na clínica onde Alma trabalha. Lá, sua sanidade mental é confirmada como ilesa, mas a causa para sua mudez (bem como uma possível cura) permanece incerta. Ao perceber que manter Vogler no hospital é inútil, a médica-chefe então sugere que a atriz passe um tempo em sua casa de verão, acompanhada por Alma. Isoladas no local, a situação permanece a mesma; a enfermeira, que sempre foi considerada boa ouvinte, fala sobre sua vida e a atriz escuta, demonstrando compreensão e empatia.
Apesar da descrição acima ser bastante reduzida e revelar uma aparente objetividade no rumo das coisas, já abre um leque considerável para reflexões. Para aliviar a dor e se sentir menos sozinho, basta ter alguém que apenas se disponha a lhe ouvir? Qual a dificuldade para uma inversão de papéis entre uma boa ouvinte e alguém com fala fluente? Esses papéis, aliás, já seriam definitivos em nós, como muitos modos de vida pregam? Através da constante quebra da quarta parede e da opção em focar apenas num único rosto enquanto uma conversa acontece, Bergman faz essas e muitas outras perguntas diretamente ao espectador que, graças ao ritmo imposto rápido pelos cortes secos, fica sem tempo e expressão para dar uma resposta objetiva – afinal de contas, o objetivo não é esse; como o próprio título e sua muito comentada introdução “recortada” denunciam, o filme explora conceitos freudianos a fim de elucidar o papel do cinema (da arte em geral, até) como ferramenta psicanalítica, auxiliadora no despertar de sensações inconscientes e também instrumento para a compreensão destas.
Impressiona o comportamento revelador e multifacetado do silêncio em Persona. A linha que separa o conforto ao não receber uma resposta indesejada da sensação de estarmos simplesmente despejando palavras no vácuo é tênue, e não surpreende que a reação mais imediata a tal situação seja barulhenta – isso é mais facilmente palpável na música, onde tal contraste é usado para dar dinâmica às composições desde sempre. Para ficar em poucos exemplos, cito os pioneiros do post-rock Godspeed You! Black Emperor e as peças ambientais do polêmico álbum Filosofem, do Burzum, que inclusive surgem depois de canções ruidosas, provando assim que a ordem dos fatores não altera o produto (ao constatar que o barulho que fazemos é inútil, não restam muitas saídas fora permanecer em silêncio e reavaliar nossas rotas).
Além dessa divisão proporcionada pela quietude, outro grande ponto do filme é abordar também a união que ela pode causar. Por se tratar da resposta mais ambígua que existe, o silêncio permite a imersão de um indivíduo na instabilidade de outra pessoa – novamente utilizando de exemplos musicais, essa ambivalência criada pela quietude explica o porquê da peça “4:33” (onde nenhum instrumento é tocado e, exclusivamente, os ruídos ambientes incidentais ditam a unicidade de cada execução, pelo tempo exato que dá nome à canção) ser a mais obra mais conhecida do compositor John Cage e causar controvérsia até hoje. A citação mais famosa do músico é categórica: “tudo que fazemos é música”. E é verdade, visto que o silêncio tanto favorece a percepção do que nos rodeia como propicia um olhar para dentro de nós mesmos.
Todavia, essa entrada no subconsciente de um outro alguém, como uma das cenas mais clássicas do filme mostra, pode ser algo invasivo a ponto de deixar traumas na individualidade de uma pessoa – enquanto a outra, curiosamente, parece reafirmar sua identidade com essa guinada agressiva. De certo modo, então, constata-se que esse encontro atua igualmente para a promoção da dualidade humana, mostrando o que nos torna semelhantes e o que nos difere. O silêncio da indiferença, da autopreservação e/ou da censura social, tão discutido nos tempos contemporâneos está sempre ali, incomodando o espectador mesmo durante os períodos com fala.
Por sinal, contemporâneo é um adjetivo que cabe bem a Persona, mesmo que o filme tenha completado meio século de existência ontem. O jornalista Ricardo Boechat sofreu, em agosto de 2015, um surto de depressão que muito se assemelha à crise existencial vivenciada por Elisabet Vogler, o que só reafirma a potência do filme como retrato dos cada vez mais comuns distúrbios psicológicos. Outra questão bastante atual colocada no filme é o problemático fardo da maternidade, imposto sobre as mulheres como se seu papel social fosse exclusivamente o de reproduzir e cuidar da família (uma curiosidade inoportuna: no Brasil, o filme foi lançado com o subtítulo Quando Duas Mulheres Pecam); o que não deixa de ser uma representação de como marcas aplicadas no inconsciente realmente podem perdurar por eras, afinal.
Muito além de um experimento metalinguístico sobre a sétima arte ou um clássico do cinema “cabeça” (termo horroroso), Persona é um grande trabalho sobre o que o silêncio esconde e revela em cada de nós. Se o longa-metragem é a obra-prima de Bergman, são outros quinhentos: vale uma outra longa, boa discussão. Por hora, o mais conveniente é simplesmente permanecer calado e procurar compreender.