Com o lançamento de Continente, equipe e elenco falam sobre Cinema de gênero, linguagem e Terror
Davi Marcelgo
As terras gaúchas se transformaram em palco para sangue e suor no Halloween de 2024 com Continente, terceiro longa-metragem de Davi Pretto, vencedor do prêmio de Melhor Direção na Competição Novos Rumos do Festival do Rio 2024. O filme confronta as raízes do Brasil colonial com toques de vampirismo e com as influências de Glauber Rocha e Jacques Tourneur no DNA, este por quem Pretto diz ter uma “grande fixação, principalmente [por] Cat People e I Walked with a Zombie, que são dois filmes que eu acho absolutamente geniais”.
Entre garotas possuídas e assassinos mascarados, muitos elementos já foram usados para provocar arrepios na espinha de quem ousa sentar na poltrona dos cinemas. O roteiro assinado por Davi Pretto, Igor Verde e Paola Wink faz da linguagem e da violência seus alicerces do terror que geram relações de poder semelhantes a realidade brasileira, ele comenta que “De alguma forma, esse sistema que opera dentro desse vilarejo, espera que essas pessoas ocupem certos espaços já designados e isso não tá muito diferente da nossa vida, do país que a gente vive, são abismos muito violentos”.
Na trama, após morar 15 anos fora do Brasil, Amanda (Olívia Torres) retorna ao sul do país ao lado de seu namorado Martin (Corentin Fila). Ao chegar no local onde passou a infância, ela vai descobrir segredos obscuros sobre sua família e os moradores. O filme é uma coprodução entre Brasil, França e Argentina, apoiado pela Berlinale World Cinema Fund, iniciativa da German Federal Cultural Foundation, em parceria com o Festival de Berlim. Atravessando fronteiras, Davi Pretto, Paola Wink e Olívia Torres se reúnem para o Persona Entrevista, em que comentam sobre o mercado audiovisual e o processo criativo de Continente.
Quais foram as suas influências para fazer Continente? Enquanto assistia, percebi inspirações em Midsommar e em Bacurau do Kleber Mendonça. Como você transformou essas histórias influentes em uma identidade que é muito próxima da brasileira?
Davi Pretto: “Eu sou um cara muito cinéfilo, vejo muito filme e vejo muito filme diferente, então, quando eu faço filmes, esses filmes [que assisto] não são meras ferramentas que estão ali para pegar um ‘pouquinho’ disso, um ‘pouquinho’ daquilo, eles fazem parte do nosso DNA, eles começam a fazer parte de quem a gente é e eles nos habitam inconscientemente. O filme [Continente] deve muito a muita gente. Desde o Dreyer aos filmes do Val Lewton nos anos 1940 que ele produziu, muitos deles do Jacques Tourneur”.
“Passa por muitos outros [diretores], Cronenberg, Carpenter e Leos Carax, e obviamente, muito do Cinema Novo, né? Eu acho que não poderia deixar de fazer um filme no interior sem pensar em filmes do Glauber Rocha, né? Sem pensar em Fuzis também. Eu acho que está tudo ali. Quando a gente se expressa, esses filmes simplesmente estão juntos com a gente em nossos corações”.
Pretto conta que Continente, a princípio, não era para ser um filme de gênero, ou seja, um Terror. Ele surgiu para falar sobre a relação de violência, de dominação e subjugação que é histórica no Brasil. “O gênero nasceu desenvolvendo nosso roteiro, porque era só através do gênero que a gente conseguiria dar conta do que a gente estava tentando se debruçar”, finaliza o diretor.
A Vulcana Cinema tem apostado em projetos de Terror, um gênero que acabou desaparecendo do país quando consideramos o circuito popular. Não há um ícone contemporâneo como foi o Zé do Caixão no século XX, então, como é apostar em Continente que acaba indo contra a corrente do circuito comercial em um país que é relutante com produções nacionais?
Paola Wink: “O Cinema brasileiro tem muito potencial de fazer histórias de gênero, vários realizadores no Brasil estão trabalhando Cinema de gênero e seguem fazendo desde sempre, tem o Marco Dutra, Juliana Rojas e vários outros que admiro o trabalho. A gente tem muito potencial, mas é difícil, o Cinema brasileiro tem que enfrentar esse desafio que é de financiar esses filmes e conseguir distribuir de uma forma que a gente consiga competir com o Cinema norte-americano, que domina todos [os outros]”.
“A gente vai lançar [Continente] junto com o Terrifier 3 e Sorria 2 e [eles] vão estar em todas as salas. A gente precisa poder ter ferramentas para competir com esses filmes e chegar no público. Então, eu acho que o cinema de gênero e brasileiro tem muito potencial, as pessoas querem assistir, vão gostar de assistir se elas tiverem oportunidade, se a gente conseguir chegar e se comunicar. Eu vejo que a gente tem que batalhar para que existam mais filmes de gênero produzidos no Brasil e em condições que sejam propícias para isso, que a gente possa financiar e ter orçamento para fazer filmes de qualidade e de gênero”.
Entre a semana de 31 de Outubro a 06 de Novembro, Continente estará sendo exibido em 29 Cinemas em todo país, em sua maioria nas capitais. Na cidade de São Paulo, apenas três estabelecimentos realizam a exibição. No aplicativo Ingresso.Com, Sorria 2 possui ao menos 30 exibidores, com variações para 32 ou 35 dependendo do dia. Terrifier 3 mantém a mesma média de 35.
Nesta história sobre o passado e presente escravocrata e dominador europeu no Brasil, a linguagem se tornou parte dos símbolos de poder e terror em Continente, exatamente como no país que subjugou línguas nativas a favor do português. A atriz Olívia Torres (Totalmente Demais) usou dessa narrativa para compor sua personagem e apostar em momentos de improviso com o ator francês Corentin Fila. Ela diz com muita empolgação sobre o processo, comparando-o com uma carpintaria – muito saboroso de se fazer.
Olívia, a sua personagem Amanda, em determinado momento do filme, acaba perdendo destaque no sentido de falas. Há uma atuação sobre gestos e olhares, sobre o seu corpo e não o que você está dizendo. Como foi esse processo de conseguir sustentar uma personagem, uma protagonista, sem ter, a partir de um momento, muitas falas?
Olívia Torres: “É curioso, nunca medi personagem por falas, sempre fiz muito Teatro em que eu fazia parte do coro e tava lá no fundo, super participando, tentando trazer toda a minha energia. Na verdade, a partir do momento que ela perde a linguagem, se torna mais interessante, porque outras coisas começam a emergir assim. Esse corpo mais animalesco e uma certa voracidade que a gente tentou encontrar no olhar, algo que torne ela é perigosa, mas também atraente. Não é perigosa o suficiente para você se afastar dela, mas não atraente também para você não perceber que ela pode te morder”.
“Uma cena específica foi uma improvisação com o Corentin, que faz o Martin. Eu falo muito básico de francês, não sou fluente, fiquei com muito receio de, nas cenas de improvisação falar algo que gramaticalmente tivesse completamente errado, daí decidi ficar em silêncio. Ele só berrando comigo, é uma cena que ele fica pedindo para que eu fale e eu, de fato, não podia falar. Foi muito interessante ver o silêncio, a reação dele ao silêncio dela. Enfim, foi muito massa, uma grande experimentação do início ao fim, muito saborosa”.
O longa foi produzido pela Vulcana Cinema, com coprodução da Dublin Films, Murillo Cine e Pasto, e com distribuição pela Vitrine Filmes. Paola Wink além de produzir e escrever Continente, também é criadora da Vulcana Cinema ao lado de Jessica Luz.
Quando Amanda e Martin chegam na cidade, ele tem um choque de cultura, os moradores saem das casas e ficam observando vocês entrarem. Em outro momento, vocês dois estão conversando, ele fala em francês e você tá respondendo em português. Nesse momento, vocês não estão mais falando mais a mesma língua. Vocês acham que essa barreira de linguagem e de cultura é um aspecto de terror em Continente?
Olívia Torres: “De fato, parece que as únicas pessoas que estão em comunicação absoluta são as pessoas de dentro do vilarejo. A Amanda sabe as duas línguas [português e francês], talvez, possa ser um lugar de posição, de poder. As pessoas ficam falando mal do Martin na frente dele, coisas horríveis e ele não vai saber o que está sendo dito. Então é difícil, né? Tem a relação da Helô com o argentino que traz as drogas, é fronteiriço. Parece que a linguagem delimita os espaços de cada um. E os signos dessas linguagens também. Eu acho que ouvir uma pessoa falando em francês, já te dá uma impressão sobre aquela pessoa. Ela é europeia, ela tem mais, sabe? Somos um país colonizado, acho que tem vários signos que a linguagem carrega que podem criar tensões, e no Terror, no Cinema de gênero, são super importantes. E aí a Amanda que sabe falar as duas línguas nega a linguagem”.
Davi Pretto: “Tem um abismo que separa essas pessoas [moradores e forasteiros], que tem a ver com diferentes identidades dentro desse lugar, diferentes posições dentro desse sistema. De alguma forma, esse sistema que opera dentro desse vilarejo, espera que essas pessoas ocupem certos espaços já designados e isso não tá muito diferente da nossa vida, do país que a gente vive, são abismos muito violentos. Por um outro lado, eu acho que apesar que tenha esse abismo que separa eles dentro dessas identidades ou dessas posições já delimitadas, tem algo neles que pulsa, é assustadoramente o que coloca eles no mesmo lugar que é o desejo. Mesmo quando a Helô, por exemplo, que é uma personagem mais frontalmente oposta a Amanda, o que ela quer também é desejo, porque toda a mudança também é desejo. Então eu acho que essa relação do desejo e da violência dentro do filme é bem assustadora e é o que torna o filme perturbador”.
O horror, agora sim deste gênero, de Davi Pretto, se lança em uma história brasileira com muito derramamento de sangue e o longa não poupa o público de ser molhado por mais litros de líquido vermelho. Jumpscare, violência explícita e Terror psicológico fazem presença em Continente, qualquer entusiasta e cinéfilo pode se apavorar com as questões que o cineasta coloca no filme “somos todos iguais ou somos todos diferentes? Eu acho que essa pergunta é assustadora. Talvez somos todos iguais porque somos todos diferentes, é uma pergunta que o filme de alguma forma acaba colocando em dado momento por essa relação do desejo e da violência que tá ali rolando”, encerra o cineasta.