Umberto Eco
Eli Vagner F. Rodrigues
A obra ficcional de Umberto Eco é conhecida por exigir do leitor um pouco mais do que uma visão mediana da cultura. Suas obras são elaboradas a partir de complexas referências do mundo das artes, filosofia, história e da própria literatura. O que torna a leitura fascinante também dificulta a interpretação. Esta característica e a reação do público (crítica e leitores) levou o autor a publicar o “Pós-scriptum ao Nome da Rosa”, espécie de bula para a elucidação de alguns aspectos da obra que se tornou um best-seller. Este traço de academicismo e erudição atrai milhares de leitores, no mundo todo, a cada lançamento de um de seus livros de ficção. O público encontra uma espécie de teste intelectual a cada página produzida pelo bruxo de Bologna.
O jogo proposto por Eco a cada novo romance está baseado no pressuposto de que o leitor possui um bom conhecimento do que podemos denominar “a evolução do pensamento humano”, suas conquistas e progresso. Um aspecto curioso, porém, pode ser destacado a partir de uma leitura mais atenta de suas obras. Desde o primeiro romance “Nome da Rosa” até o recente “O Cemitério de Praga” e mesmo no recentíssimo “Número Zero”, um tema inusitado permeia as obras de Umberto Eco, a saber, a história da ignorância humana. Acostumados a tentar identificar as referências sobre as conquistas da inteligência em suas obras ficamos surpresos com um enfoque contrário ao que seria a história de nosso progresso intelectual. A tese de Eco, explicada em linhas gerais por Jean Claude Carriere na obra “Não contem com o fim do livro” é a de que a história da ignorância é mais pródiga em exemplos, segmentos, objetos de análise e estudo, do que a história das conquistas intelectuais. Além disso, o estudo do erro, da ignorância, da superstição, do medo, é uma forma de estudar o próprio progresso. Em seu primeiro romance “O Nome da Rosa”, Eco contrapõe o método investigativo, característico da ciência e da criminologia, com um ambiente de superstição característico da alta idade média. O objetivo seria traçar um erudito panorama das crenças, superstições e teorias “científicas” da época, sob o pano de fundo da vida monástica, da contemplação filosófica e da opressão dogmática da igreja e da inquisição. A diversão a que se entrega o do chamado “leitor modelo”, que, assim como o monge detetive (Guilherme de Baskerville, clara homenagem à Guilherme de Ockam e à Artur Conan Doyle – O Cão dos Baskerville) persegue a verdade sobre os assassinatos, é desvendar não apenas os crimes, mas a história do dogmatismo e das heresias. O leitor é levado a uma busca pela iluminação intelectual assim como os personagens tentam se livrar das trevas da ignorância que está presente em cada cela monástica e em cada biblioteca proibida. Nesse sentido a obra se torna um desafio de conhecimento, um jogo de perguntas e respostas sobre a ignorância e o medo do conhecimento. Mas é também nas referências ao dogma, ao obscuro, e à pseudociência que se dá a experiência interpretativa do mundo. A interpretação do mundo passa necessariamente pela dualidade da tentativa e do erro.
A segunda obra, “O Pêndulo de Foucault”, apela não somente para a ignorância dos personagens como mote para a compreensão do histórico intelectual humano, aborda diretamente a nossa suposta ignorância sobre a verdadeira história da humanidade, isto é, pela trama oculta que teria dado origem às instituições e fatos que, ignorantes das verdadeiras causas, atribuímos aos fatores conhecidos através da “história oficial”. Em outras palavras, Eco explora as teorias de conspiração, desta vez sob a ótica das sociedades secretas. Misticismo, Ocultismo e Iniciação dão acesso à outra compreensão da realidade. As três palavras estão sempre relacionadas com a história da ignorância, tanto do ponto de vista do ceticismo, que obviamente classifica toda a literatura e a prática destas artes “diabólicas” como fruto da ignorância, quanto do ponto de vista da suposta ignorância que a maioria (nós que não praticamos essas heresias) teria da verdadeira trama por trás da realidade cotidiana.
O romance “A Ilha do dia anterior” se baseia numa ignorância fundamental, a ideia de que o tempo pode ser espacial. Explico, no romance, nas ilhas Salomão e nas Ilhas Fiji, geograficamente distantes poucos metros, ao mesmo tempo vivem dias diferentes, numa o hoje, na outra o amanhã ou o ontem, dependendo da ilha. Os erros das línguas, a confusão da linguagem e a ciência do século XVI dá o pano de fundo da trama. Química é alquimia, a botânica ainda é incipiente, não tínhamos os modernos métodos de síntese, a astronomia ainda tem resquícios das teorias de Ptolomeu, a teologia se molda ao Aristotelismo, a cartografia é um terreno de imprecisões, a medicina não conhece os micro-organismos, a nossa ignorância sobre o mundo era maior que o conhecimento que possuíamos. Neste contexto a linguagem é pura polifonia, como destaca o tradutor da obra para o português, Marco Luchesi, “sobreposição, decomposição, dualidade, romance escrito em barroco”.
“Baudolino”, quarto romance de sua carreira ficcional tem lugar especial nesta listagem e, a meu ver, antecipa o tema de “O cemitério de praga” em vários aspectos. O narrador (primeira pessoa) é um inventor de histórias (eufemismo para mentiroso) que molda a narrativa de acordo com sua consciência turva (algo bastante comum entre os humanos). Por toda a obra tem-se a sensação de que estamos sendo enganados pelo autor da história oficial. A tese que afirma que a história é contada pelos vencedores ganha ampla fundamentação ficcional neste exercício literário de Eco.
Chegamos, talvez, no ápice do projeto de conhecimento pela ignorância criado por Umberto Eco. No romance “O cemitério de Praga” o pano de fundo das elucubrações de Simonini, personagem central do romance, é composto por um histórico de conspirações e falsificações que levaram a publicação e divulgação do famoso apócrifo “O manuscrito dos sábios de Sião”. Este panfleto representa uma das maiores armações político-cultural-literárias a favor do racismo e do preconceito antissemita. Sendo um dos mais divulgados entre os panfletos disseminadores do ódio cultural, ficou conhecido como um exemplo de falsificação de ideias e fatos no sentido de criar uma cultura do ódio racial. O alcance e influência desta “obra da ignorância humana” não tem paralelo na história do erro. O chamado mito da conspiração judaica atingiu desde declarados antissemitas sem formação intelectual (boa parte da cúpula do terceiro Reich) como pensadores fundamentais para o século XX. Para termos uma ideia do estrago provocado pelo panfleto, recentemente Peter Trawny, catedrático responsável pela edição dos cadernos negros de Heidegger, considerado o maior filósofo do século XX, publicou uma obra intitulada “Heidegger e o mito da conspiração judaica”. O mito da conspiração judaica teria atingido até mesmo as esferas mais altas da inteligência alemã. A partir deste simbólico exemplo somos levados a concluir que a história da ignorância não deve ser menosprezada como um tema menor. Com Umberto Eco e sua fantástica obra ficcional constatamos que realmente o conhecimento é um gênero da ignorância.
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