Jamily Rigonatto
Estamos em Agosto de 2016. Depois de tanto pegar fogo, as grandes capitais percebem que lutar pela diminuição da tarifa dos circulares deu certo e decidem se engajar politicamente em outros espaços. O movimento amplificado em milhares de vezes chegou ao Congresso Nacional e a atual presidente, Dilma Rousseff, perde seu cargo por meio de um Impeachment feito às pressas e com consideráveis buracos constitucionais. O momento parece estranho, pessoas comemoram ativamente nas ruas e outras se preocupam. Estas, previam um futuro que sacrificaria muitos e, entre Arte e cotidiano, O Palhaço da Cara Limpa remonta uma partícula de pólvora dessa explosão catastrófica.
O longa-metragem ficcional fez parte da seção Mostra Brasil na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e é assinado pelo diretor Camilo Cavalcante. Protagonizada por um ator em decadência e em crise conjugal Flávio (Flávio Renovatto) – que também assina o roteiro junto do diretor e de Caio Zatti –, a produção explora a incerteza trepidante de viver de algo que perde valorização a cada dia e em um país que estimula ideais mais conservadores, capitalistas e, sinceramente, lunáticos – à exemplo do “Kit Gay”, que também ganhou seus minutos de tela.
Em uma cena semelhante a uma vídeoarte, estímulos visuais remontam uma atmosfera carregada usando vídeos populares durante a pré-campanha e o governo de Jair Bolsonaro. Juntas, as cenas são um sonho, um lembrete e um reflexo inconsciente que se insere como uma cicatriz.
Um ponto interessante de O Palhaço de Cara Limpa é explorar essa simplicidade do rotineiro para criar momentos de proximidade. Assim, nos sentimos vivendo exatamente no mesmo ciclo temporal que os personagens e compartilhando todas as sensações com uma vivacidade extremamente sincera. Ver a relação doce entre a mãe e o protagonista é um afago, assim como encarar o compilado de Jair Bolsonaro e suas falas causa nervoso.
Essa capacidade de identificação é tão bem feita que, depois de rir, se entreter e ter raiva, o sentimento que sobra no final é um grande… vazio. Não que esse vazio seja simplesmente despropositado ou o resultado de uma narrativa sem corpo, pelo contrário, é uma afirmação de que o filme cumpriu seu propósito: tocar na ferida. Assistir do telão de um cinema os movimentos que colocaram tantos em vulnerabilidade causa certa angústia; nos lembra da parte que falta.
Ambientado em Recife, o longa-metragem explora uma certa poluição de tela para espelhar a experiência individual no contexto coletivo. Espaços repletos de pessoas, objetos ou até lixo, como é o caso do cômodo em que Flávio ensaiava seu projeto cenográfico, aparecem com frequência na tela. Essa imagem replicada causa uma ansiedade que se distribui conforme a progressão dos acontecimentos.
Uma das estratégias da montagem – também assinada por Caio Zatti – é usar gravações e recortes da época dos acontecimentos para ilustrar a crise política estabelecida. Em uma pequena televisão de tubo, cenas da votação do Impeachment se inserem. Apesar de cumprirem seu papel na localização temporal do longa, são em partes cansativas, já que alguns trechos se estendem por bons minutos.
Talvez pela sensação contraditória, esses takes retomem a tal ansiedade ao assistir o filme. Ao mesmo tempo em que há movimento nas cenas, elas parecem muito monótonas, um quase ciclo que vai se expandindo e consumindo grande parte do enredo. As quebras ocorrem por meio dos monólogos do protagonista, que, por vezes, inserem um tom mais cômico que alivia o peso causado pelo contexto.
Um dos pontos mais altos da narrativa é o uso da Música como ponte entre os cenários e momentos. Com letras inteiras em evidência, os sentimentos não expressos do protagonista aparecem nos tons melodiosos escolhidos por Moabe Filho e Lucas Ramalho. A soundtrack se torna parte indispensável de uma produção que parece ter pouco investimento em cenografia, mas preenche as lacunas com elementos não palpáveis.
Flávio Renovatto atua em uma formato de quase monólogo em quase todo o longa-metragem. Parecendo ter um universo particular até quando interage com terceiros.
Os discursos solitários de Fábio são companhia para o silêncio que sobra na alma no fim da exibição. Com a solidez desesperadora que a parte mais ligada ao contemporâneo da narrativa dimensiona na tela, a pontada no peito e a boca seca se instalam de forma quase compulsória nos telespectadores, que performam certa solidariedade e empatia com os outros indivíduos que partilham aquele momento.
Agregando mais um ponto positivo para o cenário nacional, o longa-metragem é o tipo de produção que relembra alguns fantasmas que não morreram, só se esconderam no subconsciente. Ao fim, O Palhaço de Cara Limpa parodia a vida com uma franqueza assustadora. Entre crise, riso, sarcasmo, medo, desigualdade, rivalidade partidária e muito mais do que constitui a política brasileira, sobra pano na manga para saber que os palhaços da vida real vêm todos com caras limpas, ternos caros e grandes campanhas eleitorais.