Você pisa em território indígena e O Estranho expõe isso

Cena do filme O Estranho. Ao fundo, vemos um avião no lado direito da imagem. Em primeiro plano, uma grade divide o aeroporto das duas mulheres que estão do lado de fora da grade. Ao lado esquerdo, Sílvia está apoiada na grade. Utiliza uma tiara colorida, uma blusa vermelha com uma abertura nas costas e calça jeans. Mais a direita, Alê está de braços cruzados. Utiliza uma camisa cinza, calça jeans e seu cabelo está amarrado com uma trança.
Ao longo de 1 hora e quarenta minutos, vemos a história de Guarulhos por diversas perspectivas (Foto: Embaúba Filmes)

Marcela Lavorato

Qual seria o seu sentimento se, ainda criança, tivesse o território invadido, a casa demolida e a vida inteiramente mudada, para sempre, para dar lugar a um aeroporto? O Estranho se apresenta dessa forma, como uma ficção, mas entrega um caráter mais documental pelo motivo de que essa é a história de muitas pessoas que são afetadas pela colonização, seja a de 500 anos atrás ou a de ontem. 

A trama, exibida no 73º Festival de Cinema de Berlim, acompanha Alê (Larissa Siqueira) e a sua jornada para trabalhar no Aeroporto de Guarulhos, em cima do lugar onde já foi sua casa, em território indígena. Dentro dessa atmosfera, somos envolvidos no drama da personagem, partindo do dia a dia no emprego até suas abstrações sobre a sua vida – como ela é ou como poderia ser. Caminhamos com Alê e somos invadidos pelas suas emoções quando a mesma relembra o seu passado, que é muito sentido no presente. Por se tratar de um tema tão atual em nossa história, a obra afirma-se nessa capacidade do Cinema de reverberar questões sociais através do espaço-tempo, sem ser simplista.

Cena do filme O Estranho. Quatro fotos estão sobre a cama. Em cada foto, há pelo menos uma pedra de diferentes formatos, cores e materiais. Uma mão está no centro da imagem colocando um objeto sobre as fotos.
O longa ecoa sua potência, atravessando seus telespectadores (Foto: Embaúba Filmes)

Trazendo atores e amadores, como a personagem Antônia (Antônia Franco), O Estranho se enriquece com essa troca de experiências e vivências. A atuação de todo o elenco e os núcleos que se misturaram é essencial para ambientar o clima do filme, com destaque para: Larissa Siqueira, Rômulo Braga, Antonia Franco, Thiago Calixto, Laysa Costa e Patrícia Saravy. Os atores foram capazes de extrair potência nos fatos do cotidiano, como na cumplicidade do relacionamento queer entre Alê e Sílvia (Patrícia Saravy). Além de tratar sobre a preservação do território indígena, vemos também a questão da precarização do trabalho no aeroporto, a rotina do sagrado, o translado ao retornar do emprego, o contato com a natureza e a procura por pertencer a um lugar de representatividade, que acaba sendo destruído a medida em que seu território é invadido. Tudo isso, de uma maneira pujante, que nos leva a experimentar o filme para além dele mesmo.

Encaminhado a partir de uma pesquisa sobre os diversos pontos da história de Guarulhos, a dupla de diretores Flora Dias e Juruna Mallon – que já trabalharam juntos em O Sol nos Meus Olhos (2013) –, assinam uma produção evidentemente necessária para a atualidade. Idealizando o projeto desde 2014, os cineastas não pecam em apresentar algo que, em suas próprias palavras, o próprio movimento indígena vem há décadas reclamando: o Brasil é território indígena. Em certo momento do filme, a ficção passa a ser realmente documental por causa das entrevistas com os indígenas da Aldeia multiétnica Filhos Desta Terra, que mostram as suas culturas, ancestralidades e a resistência para garantir os seus territórios por direito. 

O Estranho produz uma narrativa – assinada também pelos diretores – muito fluida, que não necessariamente precisa apresentar desfechos para se mostrar como completa. As histórias individuais das protagonistas, mesmo não concluídas, se inteiram, pois estão entrelaçadas nessa comunhão de trabalho, casal e amizade. A porosidade do enredo é como se fosse uma lençol freático: a medida em que nos é introduzido um novo relato, o acúmulo da narrativa vai se compondo até preencher um espaço dentro de nós que nunca estará completo, pois o filme se constrói também através de mostrar, para os espectadores, que eles também têm de ‘ir atrás’ dessa história, tão invisibilizada e ignorada por tanto tempo. 

Cena de O Estranho. Ao fundo, um túnel em volta de uma floresta. Em primeiro plano, uma mulher indígena, do povo Pankararu, caminha pela estrada fumando um cachimbo. Ela veste uma blusa cinza, uma saia de palha com listras vermelhas e utiliza colares.
O filme mostra uma parcela da história de Guarulhos, que é tão negligenciada (Foto: Embaúba Filmes)

A sonoridade do filme, direcionada por Gustavo Zysman Nascimento, Léo Bortolin e Vitor Moraes, é uma questão muito pulsante: turbinas de avião, rodinhas das malas de viagem, cantos sagrados, rio, correnteza, pássaros e cachoeiras. Tudo é muito sentido não só pela escuta, mas também pela eficácia das imagens – com direção de Camila Freitas e assistência de Ana Galizia –, que se juntam com os sons, como a cena do Rio Baquirivu; às vezes com leveza, como a chuva, ou com brutalidade, representada pelas aterrissagens. Com transições através de sobreposições de imagens e sons, o silêncio se apresenta como parte importante para a composição, desenhando uma textura própria do longa que podemos experimentar a partir da montagem feita por João Marcos de Almeida.

Com isso, O Estranho – vencedor de diversos prêmios, entre eles, Melhor Som e Melhor Fotografia no Festival Internacional de Curitiba, Olhar de Cinema, e Melhor Filme no Queer Art Lisboa –, mostra que quem é o estranho ali da situação é o aeroporto. O território, antes de tudo, era constituído por famílias e amigos; vidas que foram levadas para longe de onde pertenciam. A construção do Aeroporto de Guarulhos toca em uma ferida aberta há muito tempo e o filme traz essa denúncia através de uma trajetória que, mesmo sendo individual e particular, é a de muitas pessoas e de muitos territórios nesse Brasil.

Deixe uma resposta