Felipe Monteiro
Em sua terceira noite, o Festival de Artes Cênicas de Bauru nos apresenta o espetáculo Crise de Gente, da Companhia Hecatombe. O título da peça já carrega em si muito do que é abordado nas suas aproximadas duas horas tão intensas e provocadoras. A palavra mais utilizada nos discursos midiáticos, políticos e até nas conversas triviais é quem guia todo o enredo do espetáculo, se é que há um enredo.
Os atores Clarissa Maria e Alexandre Manchini dividem o palco composto por inúmeros elementos, desde araras de camisetas, máquina de lavar roupas, televisão, muro e outros, numa grande confusão de ícones que fala por si. Por meio de cenas que fluem entre performance, meta-teatro, drama, o espetáculo vai se rompendo para que as linguagens atuem, desconectando bruscamente uma cena da outra criando um jogo de ilusões e não-ilusões em que teatro e realidade se mesclam. Com todos esses elementos, Crise de Gente faz trocas com o público para falar sobre como estamos em crise moral, econômica, política, de valores, de banalidades, de gente.
Rompendo estruturas teatrais
O espetáculo já começa sorvendo de uma das denotações da palavra crise, que é o conceito de ruptura de um estado das coisas para outro, e somos introduzidos no palco, rompendo com as estruturas formais entre as paredes do teatro e a plateia. Vivenciamos então a cena que se desenrola: os dois atores estão um em cada lado, separados por três estruturas que são chamadas de muro. Neste primeiro instante, os atores recitam um texto quase que profético sobre como nosso individualismo exacerbado nos leva a comportamentos que, aos poucos, estão deteriorando as relações pessoais, a sociedade e até o planeta, uma falta de consciência de coletividade somada ao hedonismo e consumismo inconsequentes, como percebemos no trecho recitado sombriamente “A terra vai sacudir tudo o que faz mal a ela […] estamos todos no mesmo barco”.
Ao final da performance, os atores rompem o clímax apocalíptico a que se conduzia a cena, apresentam-se e somos conduzidos em uma pesquisa realizadas pelos próprios com a prerrogativa de que a peça fora financiada por projeto de fomento à cultura, é aí que então somos fisgados pela primeira ilusão do ser/não ser teatro; o muro que divide o palco é elemento principal da cena, perguntas como quem se define como gênero masculino ou feminino, quem utiliza transporte público, quem possui determinada faixa de renda, compõem um jogo que vai nos deslocando entre os lados do muro – a metáfora das barreiras sociais que nos separam. A dinâmica se encerra com a estrutura do muro sendo deslocada, então somos introduzidos no que seria uma festa, onde todos têm que se abraçar e usar uma máscara. Tudo se transforma em uma manifestação similar às ocorridas nas jornadas de junho de 2013, a alcunhada festa da democracia na qual um boneco inflável é erguido, remetendo às figuras políticas infláveis dos atos. Todos somos instigados a bater no boneco colocando para fora aquilo que acreditamos, nossos fantasmas e ideologias.
O real, o atual e o desagradável entram em cena
A vivência direta do espetáculo se encerra e, já na plateia, assistimos ao desenrolar da peça. A primeira cena, do que seria um segundo ato, começa já simbólica, os atores tiram as roupas e colocam para lavar na máquina presente no palco. O espetáculo que segue até o fim é uma verdadeira lavação de roupa da sociedade, de nossos erros e acertos, nosso egoísmo e hipocrisia. Deste ponto em diante, o espetáculo segue intercalando performances abertas com possibilidades de interação, cenas dramáticas e um jogo de meta-teatro. As performances e cenas abordam o real, o atual, inserindo esses elementos no ato mesclando ficção e não ficção para construir uma narrativa caótica.
Os inúmeros elementos do palco carregam em si muito simbolismo, a bandeira nacional, por exemplo, é utilizada de inúmeras maneiras, ora como simples elemento cênico, ora como símbolo nacional banalizado. Os efeitos que compõem o espetáculo são jogos de luzes, projeções de textos que competem por atenção com a narração, trechos de jornais e entrevistas. Todos esses elementos acabam por ser um caos iconográfico, mas que não deixa de ser uma metáfora para a nossa sociedade midiática que passa por crise de informação, somos bombardeados de informações que não conseguimos assimilar e disso decorrem inúmeros problemas, a crise da sociedade capitalista com o advento da internet e a massiva absorção de redes sociais e outros elementos para nos comunicarmos gerando, ao contrário, um vazio de falas. Crítica essa que também é exposta por Leandro Karnal no programa Café Filosófico e recebe projeção na televisão do meio do palco.
Dentre as cenas que seguem nessa estética, vale ressaltar algumas. Uma delas é construída com os atores fugindo de um arrastão na praia, eles pedem ajuda ao público, como um celular emprestado para poderem ligar a polícia, dinheiro para voltarem para o apartamento ou pegar transporte público e gradativamente os pedidos de ajuda se transformam em outro tipo de socorro, dessa vez de necessitados que pedem esmola ou que pedem droga, desses partindo ainda para pedidos desesperados de curtidas em fotos no Facebook e Instagram. Há também uma performance de extrema profundidade dramática por sua composição e iluminação vermelha, os atores vestem coletes salva-vidas e disputam entre si carregando um ao outro e depois empurrando-se, quase que numa dança infame que narra com movimentos nossa disputa por sobrevivência em detrimento do próximo.
Outra cena que merece destaque aborda a questão dos privilégios sociais. Para isso, Clarissa assume o papel de uma representação alegórica das camadas privilegiadas da sociedade e sai desfilando pelo palco e ordenando que Alexandre, que assume alegoricamente as classes oprimidas, vá limpando o caminho por onde passa; nesse ato os opostos vão fluindo em cena para demonstrarem os preconceitos e posições de poder, em um determinado momento Clarissa passa a atuar como a figura da sinhazinha e Alexandre, a do escravo, ou mais para frente ela é a burguesa heterossexual branca e xenófoba, ele vai do homossexual ao travesti e imigrante sírio, sempre com a atriz desfilando e o ator limpando seu rastro.
No meio desses fragmentos, a transição geralmente ocorre com um corte seco que anticlímax, seguido de uma reflexão dos atores sobre as cenas, suas atuações, conflitos do ator com seu ego, com a atuação. É um meta-teatro que aborda as crises do próprio ator, do teatro, dos processos de criação.
O final do espetáculo carrega duas cenas de profunda emotividade. A primeira relata a cultura do estupro. Clarissa interpreta o papel de uma mulher cujo nome é Crise, tem 19 anos está desempregada e foi estuprada. Basicamente a atriz senta, apresenta a personagem e relata o fato enquanto tira uma das peças íntimas do ator que, ao final da fala impede que a vítima Crise saia de cena, forçando-a a voltar para a cadeira repetindo o processo numa gradação que demonstra os estágios da degradação da mulher perante o ato violento, além da metáfora de que a cultura machista se repete ao cansaço da vítima sem que nada seja feito. A segunda cena é o próprio encerramento no qual os atores, assim como o boneco carregado por eles, vestem-se igual a Alan Kurdi, o menino sírio de três anos encontrado morto numa praia da Turquia, o palco enche-se de água que vaza lentamente para a plateia e os atores se juntam ao boneco caído no chão.
O espetáculo consegue atingir seu objetivo ao nos deixar em estado de incômodo, reflexivos e conflitantes conosco e com nossas realidades, o caminho para isso talvez peque em excesso de informação, mas nada que impeça a reflexão geral sobre a mensagem apresentada. Crise de gente revela que vivemos uma verdadeira crise de gente, de pessoas, estamos nos consumindo uns aos outros. Nesse jogo feroz, precisamos perceber que estamos no mesmo barco antes que possamos morrer afogados na praia.