No site oficial da Casa Branca, Michelle é a única primeira-dama que, ao ser descrita, tem a sua profissão citada antes de ser nomeada como “esposa do 44º presidente dos Estados Unidos” (Foto: Netflix)
Natália Santos
Depois de levar a estatueta do Oscar de melhor documentário com “Indústria Americana” (2019), a Higher Ground Productions, produtora do casal 20 Michelle e Barack Obama, retomou a parceria com a Netflix para dar continuidade ao que prometeu ao abrir a empresa: “cultivar vozes criativas e auxiliá-las no processo de contar suas histórias”. Dessa vez, a escolhida para compartilhar algo, na nova produção do casal, foi 46ª primeira-dama dos Estados Unidos, conhecida também como Michelle Obama.
O anúncio foi feito no final de abril, exatamente nove dias antes da estreia e distribuição na plataforma da Netflix, gerando grande alvoroço nas redes da ex-primeira-dama. Intitulado “Minha História”, o novo produto da Higher Ground, recebeu a direção de Nadia Hallgren, outra conhecida do streaming pelo curta-metragem “Após o Furacão Maria” (2019). Mas, diferente de outros lançamentos da plataforma, a grande propaganda e divulgação ficou em segundo plano. Nem destaque na tela inicial o filme do casal recebeu no dia do lançamento (06/05).
A proposta era simples: um documentário com imagens do backstage da turnê norte-americana de divulgação do livro “Minha História” (Becoming, 2018) de Michelle Obama. Além disso, a produção ainda prometeu um olhar íntimo sobre a vida da ex-primeira-dama que, agora, vive um processo de transição pós-Casa Branca. Entretanto, o resultado seguiu um caminho diferente: “Minha História” tornou-se um filme promocional, mas ainda assim político.
Não é novidade que Michelle Obama foi uma primeira-dama diferente para os Estados Unidos e não digo isso restringindo-a somente ao fato de que foi a primeira afro-descendente a ocupar o cargo. Michelle foi uma peça importante e extremamente fundamental nas campanhas de Barack Obama, discursando em comícios e estando cara a cara com os votantes. Posteriormente, durante os oito anos do governo de seu marido, foi ativista em inúmeras causas sociais como em trabalhos com os veteranos de guerra e suas família e na defesa da educação das meninas em todo o mundo.
Entretanto, nem tudo são flores e isso faz questão de ser mostrado no filme. Por meio de uma narrativa em primeira pessoa com inserts da Michelle em entrevistas ou conversando com jovens, também foco de trabalho da advogada, o documentário, até certo ponto intimista, coloca em questão toda a pressão e a ausência de liberdade existente na escolha de ser uma figura pública.
Essa oposição entre pressão e liberdade é simbolizada no filme por cenas de público e o privado da vida da autora. Assim, em situações públicas como em entrevistas, é possível encontrar uma mulher que assume um roteiro rígido a ser seguido, segurando uma performance que não pode ter falhas, afinal está sendo vigiada em todos os movimentos. Enquanto, ao se tratar de liberdade, o espectador encontra uma versão leve de Michelle no ambiente privado como, por exemplo, com a família vendo fotos da infância. E é nesse jogo de público e privado, liberdade e pressão, que as críticas suprimidas nos oito anos de Era Obama saem pela boca de Michelle.
O livro de memórias de Michelle bateu o recorde de vendas em 15 dias com dois milhões de exemplares, tornando-se o título mais vendido nos Estados Unidos em 2018 (Foto: Ashlee Rezin/Chicago Sun-Times via AP)
Ao todo, a tour de divulgação do livro passou por 34 cidades no território norte americano. Michelle foi recebida e entrevistada por grandes nomes da televisão como Oprah Winfrey, Gayle King e Stephen Colbert em grandes arenas lotadas. Nesses momentos, os momentos de pressão no espaço público, a ex-primeira-dama mostra que não foi apenas um rostinho bonito na Casa Branca ao posicionar-se em relação a momentos históricos do país.
Michelle retoma a perseguição que sofreu da imprensa norte-americana durante a primeira campanha de Barack Obama, mostra-se contrária e cética à ideia de que os Estados Unidos estaria vivendo uma era “Pós-Racial” por ter tido um presidente negro, como se todas as problemáticas raciais tivessem sido supridas com esse fato; e, por fim, ainda explana sem constrangimentos que está feliz e liberta em deixar a vida da Casa Branca.
Assim, nessa combinação entre cenas de entrevistas e fotos de família, algo fica claro: Nadia Hallgren, ao assumir o comando do documentário, presumiu que os espectadores já tinham lido as memórias de Michelle, o que transformou o filme em um produto bônus da obra literária. Mas como bônus, algo novo teria que ser oferecido, e esse especial foi uma imagem totalmente nova da, agora, escritora Michelle: uma mulher sem os trajes assinados por grandes estilistas e com os cabelos cacheados, naturais.
Para lidar com as pressões da vida política e com falsas informações sobre sua família, Michelle desenvolveu um mantra: “Quando eles caem, nós subimos” (Foto: Reprodução)
Mesmo acabando por passar grande tempo divulgando o livro, o longa busca refletir aquilo existente em Michelle que é capaz de lotar grandes arenas e livrarias com fãs aos prantos. Esse algo é a potencialidade da ex-primeira-dama em inspirar e envolver os seus ouvintes, afinal não é atoa que ela foi considerada a mulher mais admirada do mundo, passando o casal Trump em popularidade. Assim, claramente, se não tivessem discursos inspiradores, esse não seria um filme sobre as memórias de Michelle LaVaughn Robinson Obama.
A principal mensagem que Michelle deixa é a de que, assim como ela – uma garota do sul de Chicago, originária da classe trabalhadora e negra – outros jovens podem seguir seu sonho, independente de tão alto que seja. Ao dizer no microfone “minha história também pode ser a de vocês”, Michelle não recebe apenas uma salva de palmas, mas consegue reacender uma ponta de esperança em cada ouvinte. “Esperança”, a sensação e o termo mais utilizado nos 8 anos de governo Obama.
Por fim, mesmo que sutil e com teor crítico, a ex-primeira-dama levanta uma reflexão: como o processo de votação nos Estados Unidos pode ser uma forma de fazer com que pequenas vozes tomem proporções maiores, contribuindo com a mudança de uma nação que, até pouco tempo, tinha bebedouros diferenciados para pessoas brancas e pessoas pretas. E, assim, o documentário de proposta intimista, transforma-se em um ato político e de libertação, ao oferecer visibilidade midiática aos pensamentos e opiniões que passaram oito anos apenas na cabeça de Michelle Obama.