Bárbara Alcântara
(Atenção: texto contém spoilers!)
Dirigida, produzida e protagonizada pelo comediante indiano Aziz Ansari, Master of None coloca o dedo nas várias feridas da sociedade. Mas ao invés de machucar, faz cócegas: assim como o “Everybody Hates Chris” de Chris Rock, usa o humor para fazer uma crítica social leve e quase didática. Na segunda temporada, lançada no dia 12 de maio, esta característica foi ainda mais explorada: as risadas arrancadas do público dialogam com questões atuais como o racismo, o sexismo e a homofobia.
Apesar da sensibilidade exibida por Ansari para tratar de temáticas polêmicas – e a elegância ao fazê-lo – chegou-se a um dilema: por que é que, mesmo depois de apresentar um espectro diversificado de mulheres, o protagonista acaba se apaixonando pela branca europeia?
Algumas críticas publicadas disseram que Francesca (Alessandra Mastronardi, a crush italiana de Dev Shah, personagem de Aziz) poderia ser classificada dentro do estereótipo da manic pixie dream girl e o que Ansari fez foi mostrar que não consegue colocar em prática o que tanto prega. De fato, Francesca é uma das personagens femininas menos complexas da temporada – apesar de ser a que mais aparece. Pouco se sabe realmente sobre quem ela é ou o que faz, já que o que importa, na realidade, é o impacto que ela causa na vida do protagonista.
Entretanto, as outras personagens femininas – as não brancas europeias – são muito mais bem construídas. A começar por sua melhor amiga, Denise, negra e lésbica. À ela é reservado um episódio inteiro para retratar não só a posição da mulher negra na sociedade, mas também a questão da aceitação da sua homossexualidade pela família. Depois de anos dando pistas, ela então se assume para a mãe e a resposta que recebe é bem direta: “Já é difícil o bastante ser uma mulher negra neste mundo, e você ainda quer acrescentar algo a isso?”.
Sara (Clare-Hope Ashitey) aparece no primeiro episódio (que, inclusive, é uma homenagem direta ao neorrealismo italiano, mais precisamente ao filme “Ladrões de Bicicleta”, de Vittorio De Sica). Inteligente, bem articulada, viajada, que conquista logo de cara o coração de Dev. E negra. Sabemos muito mais dela em alguns minutos de episódio do que de Francesca, em horas. No episódio 4, o contraste se torna ainda mais explícito: enquanto Valerie (Mary Elizabeth Kelly), Coleen (Alison Barton) e Nancy (Cody Lindquist) são mulheres que têm uma vida relativamente mais fácil (uma delas vive da herança dos pais), Priya (Tiya Sircar), Diana (Condola Rashad) e Stephanie (Aparna Nancherla) são batalhadoras, esforçadas, dedicadas e em alguns momentos têm que se retirar para atender ligações ou responder mensagens urgentes do trabalho.
A responsabilidade de ser uma mulher estrangeira ou negra tentando sobreviver em meio a um mercado de trabalho extremamente machista e racista pesa. E o peso é tanto que Dev não está disposto a carregá-lo com elas. Isso porque, para ele, o fardo de ser um imigrante também é muito pesado. Na série, o distanciamento entre eles é colocado como “natural” – por falta de interesse entre ambos. Não duram mais de um ou dois encontros.
É aí que entra Francesca. Ela traz o oposto: a leveza, a diversão, a inocência. Muito diferente daquelas mulheres de negócio, sérias, responsáveis, com semblantes pesados e cansados. E o interessante é que, mesmo com todas essas características somadas ao padrão socialmente aceito (e invejado), a atração não é imediata. Dev a vê apenas como uma grande amiga. Essa aproximação romântica entre os dois só acontece depois que seu chefe comenta algo como “ela é uma gata e você está apaixonado por ela”.
Frustrado por todas as tentativas mal sucedidas de se envolver afetivamente com alguém, por meio de aplicativos de relacionamento, e instigado pela colocação do chefe, Dev passa não só a romantizar a relação com a até então amiga, mas também a projetar todos os seus desejos nela. No mesmo período, a italiana está passando por um período de tensão no relacionamento e, coincidentemente, está em Nova York – com muito tempo livre.
Como é possível perceber, sutilmente, a aproximação entre os dois não ocorre da forma inocente que parece ter sido. Ela acontece por questões bem mais profundas – e políticas. O que Dev sente não é necessariamente algo genuíno, já que o próprio gosto não é inerente e, sim, socialmente construído.
Música que Dev e Francesca dançam na “noite do pijama” – a trilha sonora não deixa a desejar
A dificuldade das mulheres negras e estrangeiras de se afirmarem socialmente, acaba por representar mais um fardo ao protagonista, que o repele. Enquanto as facilidades de ser uma europeia, a torna leve e livre, e isso o encanta – e o atrai.
Ansari pode ter errado ao não pensar que a escolha entre Sara e Francesca fosse um ato político. Ou talvez ele tenha feito isso exatamente para que essa questão fosse levantada (e o seu personagem se tornasse um pouco menos “desconstruidão”). Seja qual for a opção, é importante lembrar que esse é um fenômeno global – o mesmo tema vem sido debatido por inúmeros coletivos e grupos, adaptados à realidade brasileira. Apenas criticar a postura de Aziz não é suficiente. Agora é esperar para ver qual será o desfecho na terceira temporada.